segunda-feira, dezembro 28, 2009

Passado com passas


O abraço dobrado
e o bom passadio
de passas no arroz
era a vida dos dois
lareira no frio
praias no verão e
a vida passando
como o ferro passa
e o trem já passou.

Depois do passado
em que a história acontece
ficou só um presente
onde nada mais passa.
O presente é um roteiro
que nem começou.

segunda-feira, dezembro 21, 2009

Habitare



Há muito tempo estão conosco os móveis livros
e tantas coisas
roçando nossas vidas sob o desgaste do teto que reflete
a luz da manhã no jardim.

Há quanto tempo nos protegemos de sol e chuva e dos ventos do estio
por trás das mesmas janelas de cortinas claras
que nos defendem da rua
a resguardar a sala cor de sépia.

Há tanto contornamos a curva das escadas
sabendo cores e penumbras e paisagens do quarto mais acima
e conversamos sobre coisas sem lugar ou utilidade
que vez ou outra esquecemos como corpos mortos numa prateleira
até que se tornem de novo uma pequena surpresa e toquem nossos lábios
com uma espécie branda de sorriso.

E o que são os anos para nós
que a cada dia lemos os jornais na rede da varanda
e ainda reconhecemos os lugares das coisas
que há muito se extinguiram?

 

 

segunda-feira, dezembro 14, 2009

Adágio




Marc Chagall. Le coq blanc et les deux aimants.

 

Alguém caminha com as mãos às costas

olhando o chão como quem procura
talvez uma alegria
talvez um bom motivo de viver
como por exemplo seu gosto por comida
ora interdito.

Pelas janelas da casa voaram mais que cortinas
e há silêncios guardados nos armários
onde antes se guardavam remédios fechados à chave
com o cuidado de quem cultiva vírus num laboratório
enquanto as crianças brincam no quintal.

Uma cintilação de mar ao longe
pode ser vista entre os cascos de navios
e barcos de regata
o homem do cais puxando suas cordas
bronzeado de dar inveja
fotógrafos procurando os ângulos melhores
bem além do varal onde esqueceram uma saia.

Há um ventilador parado no canto de um dos quartos
porque fazia frio como agora
e as paredes são da cor da sombra
quando falta o sol.

sexta-feira, dezembro 11, 2009

Tomada externa



 

Corte no espaço
a rua é uma corola
ao sol do meio-dia.

Tomada externa sem closes
a solidão
protagoniza a cena.

domingo, dezembro 06, 2009

Os párias

Todo anjo é terrível
Rainer Maria Rilke
 

Foto Rogério Reis


 


Os anjos da cidade vêm da esquina
de praças e barrancos
surgem do chão de surpresa
já sem asas
estão nos botequins
dormem nos bancos de praça
nas calçadas.

Sofrem de fome em bandos
sem ter aonde levar
seu cheiro
sua revolta.

Os anjos da cidade nos sitiam
deuses sem brilho
feitos de folhas secas e unhas.
São flébeis e nos avisam
com os olhos fugidios
:
o inimigo vem de qualquer lado.

Às vezes velam os que
por suas mãos
restaram mortos
e riem
diante desses anjos desfolhados.

Um anjo desossado ingressa às vezes
no sangue de quem passa
e deita em suas horas e adormece
de um sono escuro
opaco de lembranças.

Os párias da cidade todo dia
geram outros anjos feitos
de fumo e cocaína
cola e craque.