quinta-feira, maio 31, 2007

Notícia


Edvard Munch. Mãe morta.

Vou aos pedaços
no limiar da fuga
para onde continuo sem saber.

Aprendo agora o que teus olhos dizem
a contemplar o que não posso ver.
Teus olhos se perderam noutro tempo.

Mãe
a morte te transcende e me transcende
mas não te apaga.
A morte é o fim de todos os presságios
uma armadilha
a morte é uma aranha em sua teia.

Mãe
a morte vigilante aos poucos enredou
a tua irmã que mais amou a vida.

terça-feira, maio 29, 2007

Trama

A história foi tramada
em cores e desalinhos
canções cruzadas
e passos
companheiros.

O amor cortado aos pedaços
é amor para sempre inteiro.

domingo, maio 27, 2007

Marinha


René Magritte. La grande famille.

Às vezes o mar dorme
a prensa do silêncio
guardada nos abismos.

Limiar



Te amo e te perder é o que mais temo
mas não suporto mais viver sonhando
e não saber se vivo ou se deliro
ou se é real o que no entanto espero.
Temo perder o amor que nunca tive
ou o amor que tenho sem saber ao certo.
Temo o olhar que vem desses seus olhos
e a falta desse olhar me desepera.
Já não sei mesmo se vivo ou se te espero
se sou a tua escrava ou uma princesa
se o amor que sinto é vida ou é demência.
Já nem sei mais dizer o que mais quero:
se é ficar e morrer dessa tristeza
ou ir embora e morrer de tua ausência.

sexta-feira, maio 25, 2007

Negligências


Palavras têm vida própria
brotadas dos vãos do dia
ou de uma vida feroz
que vem de dentro.

Independentes
visitam nossa boca
repetem negligências.

Às vezes nos escapam
voam sem rumo
pela voz do vento.

quarta-feira, maio 23, 2007

Filme

Um eco de juventude toca a terra
sereias olham a praia

Sereno o mar acolhe a mesma lua
e mansamente canta a madrepérola
os sons do céu trazidos pelas conchas
canções de areia e espuma
e as faces da paixão que o luar
oblíquo
prolonga além de todas as idades.

No escuro do cinema
tudo é de novo como antigamente.

segunda-feira, maio 21, 2007

Ouro Preto




Uma demência rasa
sorrateira
frutificando em cada vão de porta
cortou bem rente todas as certezas
e do passado restaram
balcões e alguns fantasmas.

Em cada rua relógios
sem ponteiros
pássaro tonto de tempo nos telhados
e o calendário esparso nas calçadas
procissões
vozes de amores findos
subindo dos bueiros.

domingo, maio 20, 2007

Quimera


Louis Anquetin. A avenida Clichy às cinco da tarde.

No relógio da sala
uma quimera antiga
escala as horas.

sábado, maio 19, 2007

Janela III



O dia surge em torrões
luz do oriente.
As horas se desdobram em véus
abelhas
cores florescem.

E quando a noite inaugura
a imensa catedral de uma janela
três estrelas recortadas
papel prata e purpurina
se derramam pela sala.

À luz da lua
desassisado o rio desatina
e canta
como se fosse o mar.

sexta-feira, maio 18, 2007

Vernissage


E. Munch. Blossom of pain.

Desejos desenharam
imagens na lembrança.
Arqueologia de rastros
os retratos.

Desfeita a perspectiva
adiar a vida
em paralelas atiradas longe
ao tempo.

quinta-feira, maio 17, 2007

Hoje



Hoje não quero nada do que tenho
hoje não quero
senão o impossível.

Hoje é o combate das sombras
a discussão sem rumo
o indiscernível.


terça-feira, maio 15, 2007

Cidade


Foto C. Costa

Um ônibus ronrona
aço irritado
entre ruídos sem nome.

De uma janela
a esperança espia e se recolhe.

O céu toldado resume
as ameaças do mundo
nos galhos da amendoeira.

Alheio a tudo o menino
pedala para bem longe
uma canção de infância
e salvação.

segunda-feira, maio 14, 2007

Testemunha



Quando você sai
e o retrato da mesinha
alonga o olhar de paz
à mão com que aceno da janela
percebe com certeza
antes de nós
a transfiguração da tarde
e o blues que se insinua pela sala.

Esse retrato
conhece
a perfeição sem palavras
o inominado
o estado puro do amor
como um rosa perfeita
despetala.

sábado, maio 12, 2007

Destudo



Em meu jardim imaginário e frio
o imenso templo sem deus
ficou vazio.

O olhar não segue mais
vulto nenhum
e os planos de viagem
versam agora mapas
de miragens.

quarta-feira, maio 09, 2007

Retratos




Lembra o vestido de linho
daquele dia
sozinhos na varanda?
Lembra da luz
última luz da tarde
dom do estio
sobre o tapete da sala?

Lembra a manhã daquele outono frio
o vento pela praia
nossas festas
noites de junho
os dias de Veneza?

Lembra a música das conchas
o horizonte
as frases do segredo
a delícia da pele
– lembra?

Lembra que a vida
inda floresce à tarde na varanda
e enche de asas o ar que respiramos.
Nosso desejo é como um andarilho
que nada sabe do tempo
e nunca esquece.

terça-feira, maio 08, 2007

Outono

Fez hoje uma tarde frágil
clandestina
pelo ar
a luz do outono
úmida e leve.

Me debrucei no muro
pensei colinas
azuis
e a mim me devolvi
de mim lembrada.

segunda-feira, maio 07, 2007

Gaivota


Rui Elias. Rota de colisão.

Voando ao vento
sabe seu rumo
inscrito em cada pena.

domingo, maio 06, 2007

Vitral



A compoteira que foi de vovó
já não existe
: agora é cacos azuis.
Minha tia predileta
que me ensinou tanta história
de repente me faltou.
Meu primeiro namorado
casou e sumiu no mundo
e me casei com o segundo.

Perdi as cores mais vivas
o colo quente e as cantigas
e nunca mais vou ser virgem.

O que se perde em história
vira vitral na memória
o saldo da vida inteira
vale mais que a compoteira
a ternura que se sente
ensina que o amor existe
e já dizia Vinicius
docemente
: é melhor ser alegre
que ser triste.

sábado, maio 05, 2007

Manhã de inverno



O que te falta
impele
motivos novos
faces desconhecidas
e tudo te enamora.

O que não foi
ilumina teus caminhos.
O amor que não deu certo
e já não sangra
alimenta a vida que te espera.

A vida que te espera
além da porta
será agora
a mais bela manhã de inverno ao sol.

sexta-feira, maio 04, 2007

Das dores


E. Schiele. 1918.


Doem as previsões
o inacabado
e o cortejo dos sonhos sem futuro.
Doem medos persistentes
e a solidão
minha gêmea.

Doem os chamados que não escutei.

Dói como raiz desenterrada
todo poder injusto
na servidão dos motivos.

Doem as interdições sem rosto
lobotomia incruenta do desejo.

quinta-feira, maio 03, 2007

Prisma




Medula, sangue e alento
o teu momento irisa meus sentidos.

Serei se tu quiseres
tua véspera
um exercício de anjo
e a terra onde cravar tua raiz.

quarta-feira, maio 02, 2007

Finito


E. Munch.

Perto de um cais noturno, treva espessa,
conto as estrelas sozinhas e me esqueço
de quanto sou também sozinha e triste
desde semanas atrás, quando partiste.

Conto as estrelas caladas e o silêncio
contém a escuridão e é como incenso
subindo em homenagem aos que sofrem
cantando um mudo canto sem estrofes.

E nesse cais escuro debruçada
olho o balanço sem fim da água apagada
pensando vagamente no romance,

jogo finito no primeiro lance,
que foi como uma trova ou uma chance
de renovar a vida e deu em nada.