domingo, abril 29, 2007

Violetas


Lá fora chove
e nada do que digo
é o que queria dizer.

Estou imóvel
e tenho a pressa de uma presa
ante o felino
eternamente a preparar
o bote sem desejo
e a agonia poreja das paredes.

Asas coladas
voltamos ao casulo
viscosos seres
unidos no tormento
de um momento que não vai voltar.

Além dessas janelas
a vida comemora seus enigmas
quatro estações e luas
e o vento vibra
por suas ruas e praças.

Em nosso espaço
somos peso de carne no açougue
sem mais surpresas
repete-se o que não houve
e nos reflete
em duas dimensões
– silêncio e chuva.

Apodrecemos como violetas
o caule a desfazer-se.

sábado, abril 28, 2007

Dia




Tortuosamente belo
o dia partido ao meio.
Metade sol
outra lua.
Metade daquele dia
tortuosamente belo
foi amor
outra
amargura.

sexta-feira, abril 27, 2007

Pipoca

A gente era um contraste
vermelho vivo
no cinza dos asfaltos
lilases lusco-fuscos
todas as nostalgias do néon.

A gente se entornava pela rua
e transbordava alegria

um destempero solto na avenida
na mão
um saco de pipocas.

quarta-feira, abril 25, 2007

Madrugada



Te conheci bem antes dessa manhã
quando te inventei
te trago há tanto tempo!
A tua identidade é um pouco a minha,
teu pensamento deita em meu repouso.

Te conheci bem antes
e te reconhecer
é como andar de madrugada pelo campo.

segunda-feira, abril 23, 2007

Joana


Foto Charles Scheiner.

É tarde.
Desencontrei-me dos outros
dos amigos
– tanta amizade desfeita pela estrada
e logo comprei roupas novas
mudei de casa, tive filhos
e viajei pelo mundo
sem nunca mais ouvir suas vozes.

Talvez seja tarde agora.

Mas penso em tantas faces
tantos nomes
e esta noite mesmo sonhei com a Joana
que há dez anos perdi de vista
: falava ao telefone
aquele mesmo jeito manso que lhe conheci
fitando o chão distraída.

Era ainda a mesma Joana
tímida, ingênua, contida e delicada

– e pensar que sempre vemos tanto os outros
sob suspeitas as mais variadas!

Joana continua
a existir dentro de cada um
até de mim
que muito bem conheço minha malícia.

quarta-feira, abril 18, 2007

Agenda

Convivo com o futuro
juntando meus pedaços dispersados
por um espaço que brinca de tempo.
Aa folha branca-cega não me avisa
das armadilhas
dos rostos
do brinco que usarei na quinta-feira
nem do vazio à espera.

Jogo com minha trena desmarcada
medindo o imensurável
dos desejos.

O vir-a-ser
o reencontro
o medo
e os impulsos se escondem
e escorrem sem retorno
de minha agenda encapada
de esperança preta.

domingo, abril 15, 2007

Intenções


Pablo Picasso.

À mesa do café
gestos de recomeço nos enganam
: só intenções povoam nossas horas.

sábado, abril 14, 2007

Palavras são legendas que é preciso ler




A nossa volta
transitam as palavras
e muitas delas
dizem muito
do que ainda
não soubemos aprender.

O mundo chega estampado
em rostos livros e
jornais
juízos desencontrados
memórias
e esquecimentos.

Faltam as legendas
como nos filmes da tevê.

quinta-feira, abril 12, 2007

Vozes



Ouço uma estrelaa cantar
em alguma ilha deserta
que vagamente destila
sua luz gregoriana.

Ouço uma estrela cigana
que se desfaz quando brilha e
deixa um rastro cadente.

Escuto uma estrela insone.

A voz sirena de longe
ilumina displicente
vesperais monges rezando
no claustro de seu convento.

Amena canta essa estrela
modulando a voz do vento.

quarta-feira, abril 11, 2007

Maio



Se sou feliz
dispenso o calendário
se for preciso
reinvento maio.

terça-feira, abril 10, 2007

Escolha


Imagem Egon Schiele.

Caminho descuidada
entre teus gestos.
Por teu amor cheguei
além de meus limites
e me esvaí de mim.
Tenho vivido além
de todas as instâncias
bem mais do que
a vida pode oferecer.
E quando me procuro
já não sou eu
mas essa face
plasmada pela escolha.

Esmorecer


Desenho Robert McIntosh.

A cada passo
a estrada se transforma
entorno áspero
despenhadeiro.

Quero sorrir contigo
e entristeço
e o ia te dizer
me silencia.

domingo, abril 08, 2007

Vida breve

Para Li.


Foto Ciekawezdjecie.

A vida seca nas cerejeiras
em ásperas ausências.

A morte é bruta e
nunca se despede
– toma o que é seu
e parte
saciada.

sábado, abril 07, 2007

Tarde II



A tarde frutifica
dispersa em vôos rasos
e paira mansa a contemplar a praia
:
a tarde é hoje o
pensamento de um deus em férias.

Templo


Da Vinci. La dama scarpigliata.

Aqui
tão perto e tão longe
aqui me perco da vida
nessa mudez de mármores e bronzes.

À luz distante dos vitrais me reencontro
revejo minhas grades contorcidas
e os desenhos inúteis de meu chão.

Aqui passeio
e reconheço meus desvãos escuros
detalhes e arabescos
minha poeira estéril
e repousante.

quinta-feira, abril 05, 2007

Raízes


Henri Matisse.

Voando a bordo do vento
alçam vida provisória
papéis alados
notícias
ilusões e
garantias
cartas rasgadas e folhas
intenções
e regalias.

Voam véus
cortinas
sonhos
e aves tontas na vidraça.

No chão
expostas
revoltas
raízes de meu alento.

quarta-feira, abril 04, 2007

Salmo


Ruth Bernhard. ShellingSilk.

Não foram claros
os jardins da manhã
antes de tua chegada
nem o meio-dia
brilhava
luminoso.

Antes de vir
teceste o céu da tarde
para estender
noturna
nossa rede de prazeres.

terça-feira, abril 03, 2007

Multipalavra





Uma palavra acesa
queimando a um sol pequeno
desorbitada e só
vaga no vento
diamante feito pó.

Areias do deserto
semas perdidos
tontos
desdobrados
em repetidos temas
delirantes
rasuras no poema
palimpsesto.

segunda-feira, abril 02, 2007

Cotidiano


Henri Matisse.


Seria talvez a tarde morna
por sobre a pele quieta
ou simplesmente
uma suave vontade de carinho?
Seria essa distância indesejada
ou nada disso
– apenas a constância
a incessante, intensa
a persistente instância do desejo
que se disfarça oculta
fantasia
e todo dia
mutante
se anuncia
nessa lembrança viva de teu beijo?