sexta-feira, agosto 30, 2013

Alguém




Um traço, um lenço, um terço
o jeito registrado num retrato
e a casa de repente tão deserta
silenciando as vozes.

Alguém restou e fala por sinais
à espera da resposta que não vem
e nada mais se sabe
além de cinza ao vento
que pousa aqui e ali
em todas as histórias.

terça-feira, agosto 27, 2013

Visitante






No fim de um dia de trabalho
a noite consumada
ele vem me falar.
Desde cedo
o dia estava propício a estranhar
quase tudo que se explica pela lógica.
Espantava ser aceito
e respeitável entre os iguais
– espanto familiar
tão natural como beber água
ou ir à janela olhar a rua.

O estranhamento se aplaca
como se um amigo antigo
dissesse sou eu
do outro lado da porta.

Custei a entender
e agora sei
– isso acontece
para ampliar espaços
onde o corpo com sua alma pendurada
podem voltar a ser a dupla que já foram.
Mostra que a vida
não pode ser o que se pensa
mas tem vertentes ousadas
que o outro talvez saiba explicar
ou simplesmente vive.

O outro me abraça e segue
de um jeito calmo e surpreendente.
e vai mais longe que eu.
Aceito a mão que me dá
e vendo tudo tão claro
chego a pensar que morri
atrelada a essa imagem
de outro registro.

sexta-feira, agosto 23, 2013

Viver




Viver
é discutir o indiscutível
inadequado e lírico
inexata exatidão
rajada de impossível.

É se entrevar
manipular estorvos
e conquistar montanhas
passo a passo
topeçar
e do tropeço refazer o espaço.

Viver é se afogar
e em fogo renascer
no berço brando do amor
e desse amor
tantas vezes morrer
quantas for dado.

segunda-feira, agosto 19, 2013

Babel




Às margens do asfalto
os edifícios desenham a vida
como se fossem os ossos da cidade.

Tanta gente indo e vindo
e os pensamentos são linhas de cerol
enquanto os mutilados misturam
seus passos à multidão.

A quem pode importar
o que expressam
esses rostos velozes
fotogramas em preto-e-branco?

Ninguém conhece
as línguas que falamos
se mais que exíguo
o tempo nos confronta
nos momentos incivis
perdidos em Babel.

quarta-feira, agosto 14, 2013

Ciência inexata




Se a manhã fosse o começo
não de uma segunda-feira
mas dia desnumerado
manhã das horas queridas
de examinar com calma cada luz
cada modalidade da luz
do sol e as cores
depois
olhar sem pressa a chuva
a calha da varanda
e na sede das poças
a dança refletida
dos supérfluos
que tornam o mundo
tão delicioso.

Se os pássaros voltassem
sem antes nem depois
quem sabe a noite
viajaria do fundo de sua música
até perder-se em luas de silêncio
e dobraduras de asas
aos olhos de janelas desatadas
– música da distância –
e a luz perdida entre os muros
aparecesse em visões
que o cansaço apaga
e só conseguem
furar fugazes
os sonhos.