sexta-feira, abril 29, 2011

Poema amigo – Esther Lúcio Bittencourt.

o poema começa síncope
na minha lacuna, seu desespero
começa quando termina e vai
em púrpuras e sons se almejando.

na verdade o poema não começa
está latente na vertente da síntese
como bilabiais cevando os dentes
ou surtos de sangue em veias vazias

o poema começa e termina
na incisão precisa do meu traço
na invenção que expõe cada pedaço
a esta luz voraz, tão íntima.


quarta-feira, abril 27, 2011

Piano da noite


Mudam as luzes
luas de mecúrio
no bar escuro
as faces desfocadas
o tédio requintado
no piano.

A noite nos ilude
até o tombadilho da aurora
em sua oferenda
eterna e transitória.

A noite não tem cura
para quem
ao menos uma vez
bebeu sua música.

segunda-feira, abril 25, 2011

Conceito



Não há poemas na bolsa de valores
e entanto a poesia
traduz todas as línguas
dos homens e dos bichos
e é mulher-dama de esquina.

Não há poemas nas caixas do banco
a não ser
que a poesia se revele
na pele de algum cliente
que enquanto espera
na fila
recrie o paraíso.

quinta-feira, abril 21, 2011

Poema amigo - Nilson Galvão

A vida não é romântica

A vida não é romântica, aliás a vida
não assiste à novela, não vê graça
em pessoas felizes para sempre
ou infelizes para sempre.
A vida às vezes gosta daqueles filmes
europeus ou japoneses em que nada
acontece. Às vezes, vá lá, tem uns filmes
americanos em que pelo contrário há
peripécias em cascata e sim, a vida
aprova, sorri satisfeita sentada no
sofá da sala, a vida, ela mesma,
que aliás não é nada burguesa
como faz supor o sofá.
A vida tampouco é proletária,
e aristocrata muito menos.
Que seja grega, indiana, hebreia,
ela é antiga de qualquer sorte.
A vida também não é trágica:
talvez se contente em ser assim
uma despojada anedota
de salão.

Do livro Caixa Preta.

quarta-feira, abril 20, 2011

Os turistas



Vinham em grupos alegres
cercados de flores
a caminho da cascata
e estavam todos vivos.

Imaginei a volta
a suas terras cinzentas
as águas mortas de gelo
e registrei
sorrisos a caminho da cascata.

No fundo de seus olhos
dançavam renitentes
o medo da floresta
a excitação de se expor ao sol dos trópicos
nos cabelos
uma carícia arredia de metal.

Tocavam-se de leve caminhando
a pele
como bonecos de neve
numa calçada de suas longínquas cidades
e riam um pouco tensos
bem protegidos
contra os perigos do desconhecido
e a aventura plena
de estarem todos vivos.

segunda-feira, abril 18, 2011

Mariana cantochão



Fundo silêncio antigo derramado
pelas encostas sem fim de Mariana
a dissolver os passos na calçada.

À flor da terra antiga
a paz ainda exorciza a guerra
espera
e o silêncio rege as vozes dos negreiros
terreiros e navios
nos portos estrangeiros
falsa pátria.

Dentro de cada igreja no domingo
dezenas de mulatos e velhinhos
negros os filhos
netos da senzala órfãos
da liberdade
revezam deuses plantados na memória
a cada dia menos colorida.

Pele clareada
adormecido o banzo
os nomes dissolvidos
na língua que esqueceram
rebatizados devotos
brancos
chamam-se agora de Souza, Leira
da Silva e do Calvário.

sexta-feira, abril 15, 2011

Poema amigo – Graça Pires

 Tela de Paul Cézanne.

Todas as palavras são adequadas

 

Todas as palavras são adequadas
para evocar os dias
para sempre agarrados
à cal da casa onde nascemos.
Quase nada sei a meu respeito
desse tempo tão claro
em que as sombras eram apenas
a antecipação da noite.
Tento imitar aquela inocência
próxima da brancura dos lírios
e do frémito do rio
abraçando o mar.
Torna-se difícil encontrar os sinais
sobreviventes da memória:
a prata do chocolate
pacientemente alisada,
as velas dos moinhos,
as cerejas carnudas,
a roupa a corar sobre a erva,
a claridade das mãos da minha mãe
carregadas de tarefas e de presságios.

 Graça Pires
 De A incidência da luz, 2011

quarta-feira, abril 13, 2011

Dormir, sonhar


H. Matisse.

O corpo adormecido
deixa tudo que pulsa
entregue ao tempo.
O sonho
assola a carne
de um presente truncado.

Dormir é
sombra de bosque.
Sonhar
ralo gorgolejando
imagem de fibra ótica
ou tantas vezes
uma amostra do caos.

segunda-feira, abril 11, 2011

Palavras são legendas que é preciso ler


A nossa volta
transitam as palavras
e muitas delas
dizem muito
do que ainda
não soubemos aprender.

O mundo chega estampado
em rostos livros e
jornais
juízos desencontrados
memórias
e esquecimentos.

Faltam as legendas
como nos filmes da tevê.

sexta-feira, abril 08, 2011

Poema amigo – Assis Freitas

460 - canção de mesa, sala e corredor

tudo desistiu de funcionar
até os anjos pediram licença
parece que só eu fiquei preso
no visgo de tanta melancolia
- eu sou aquele que disse -
com o inferno nos olhos e
a caricatura de todas romãs
fruta que determina auroras
pois brilha infinda tua mão
e há teu regaço que aquece
meus olhos, meus silêncios
minhas oblíquas incoerências

quarta-feira, abril 06, 2011

Naufrágio


Traços
lembranças
gestos
e lábios
toda a constelação que nos cingia
naufragou.

Mas flutuamos ainda
ante os olhares do mundo.
Ainda pulsamos
transgressores
indesculpados
alheios ao naufrágio.

segunda-feira, abril 04, 2011

Tema antigo

Foto sem menção de autor.


O amor tem muitas faces
corpo ubíquo
e uma doçura mutante e ancestral
uma beleza lacustre de narciso
um universo no umbigo
e um longe som de sino em catedral.

Amor é lâmina que dói quando não fere
é festa que se prepara e fim de festa
é caminhada e rastro e é cansaço
é voo e luz e barco e ventania
naufraga mas se salva
arde mas não se extingue.

Serpente que se devora pela cauda
o amor não diz adeus
nem se anuncia.


Poema reeditado

sexta-feira, abril 01, 2011

Poema amigo - Nydia Bonetti

pátria

pátria
é o velho casarão em que nasci
de onde me exilei para sempre
quando soprou o vento
que soprou as cortinas e destelhou a casa
derrubou as paredes e espalhou poeira
que arranhou meus olhos de menina [ainda
vermelhos