Temos os olhos cheios
das coisas que não vemos.
:
a guerra de outro hemisfério
o rio de água apagada
a morte em nossos barrancos
lavadeiras encurvadas
e a flor carnívora
do desarrimo.
Temos ouvidos prontos a esquecer
no escuro
as baleias retalhadas
o barco vazio à espera
predadores de mesa farta e
rio acima
nas casas mornas da margem
as mães e suas crianças mal nascidas.
De tanto ver nas fotos
a pele grossa lavrada pela terra
as mãos perderam sua destreza.
dade amorim
Há muito visito Ortografia do Olhar e nunca deixo de me encantar com os poemas de Graça, assim como os que ela escolhe entre os de seus poetas favoritos. E quem visitar o Ortografia vai concordar comigo.
Do lado mais calado do tempo
Do lado mais calado do tempo
podemos falar das mãos das mães,
tão frágeis, quando trazem nas costas
a febre dos filhos.
Podemos sentir o rosto perturbado
das crianças que nos mostram a boca
mordida pela fome.
Podemos querer de volta o fascínio
dos papagaios de papel e do tempo
em que não faltava ninguém
nas fotografias da família.
Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009