sábado, março 31, 2007

Milícias aladas




Milícias aladas


Os anjos não padecem das pendências
nem dos propósitos roídos pelo tempo
de que os mortais carecem.
São seres redimidos
afiançados
nutridos
de impassível paciência
de perfeições sem saída
ilhados
sem descendência.

Nos ócios da eternidade
nem mesmo o tédio
: nada supõem sobre dias e horas
nada lamentam mas cumprem
sem remédio.

terça-feira, março 27, 2007

Surpresa

Debaixo da pedra cheia de limo
minhocas brilham
gloss
em lábios luzidios
para a falas da terra.

segunda-feira, março 26, 2007

Tormenta


Ilha de Gozo

Caminhos dágua traçaram
labirintos no convés e
impregnada de histórias
ela vaga
em uma nau perdida na tormenta.

O mundo zumbe lá longe
numa concha
e a correnteza estende sobre os mares
véus dispersos pelo vento.

O pai da noiva
não quer dá-la em casamento
contra todos os desígnios
resiste em deixar que chegue
ao cais onde o amado chora.

Mas a noiva se rebela
luta e comanda os marujos
para que sustentem as velas.

Não dá pra perder a festa
no porto que ora a espera.

domingo, março 25, 2007

Hydros I


Foto Filipe Castela


Os rios seguem destinos solidários
inconseqüentes
risonhos perdulários
transbordando da corrente.

Rios cumprem seu destino
liquescentes
ou sulcam de pedra e areia
o chão que deixaram
áspero
como o remorso.

sábado, março 24, 2007

Círculo


Imagem de Angelo Sousa.

Começo e fim
tocam-se em curva
as pontas de outro dia.

quinta-feira, março 22, 2007

Desamparo


Foto Carlos Freire.

O tempo
– nau a se afastar do cais
rumo ao desconhecido –
deixa atracado o bote da memória
sem âncora nem bússola.

terça-feira, março 20, 2007

Cárcere


Foto Wladia Drummond.


a gaveta esquecida
retém
por tanto tempo
lances de dados
jogos refeitos
e devaneios datados
de primavera

respira na gaveta
uma existência de pássaro
em vôos recriados

aberta essa gaiola
o pássaro talvez ainda hesite
em se atirar no vazio
e espere bem calado
que irrompam recém-chegadas
fantasias
de outros verões
já passados

domingo, março 18, 2007

Ave Eva


Klimt. Vida e morte.

Não sou um anjo
fui feita de barro
me afirmo pela morte
e a cada instante
a vida me consome.

Anjos não morrem
e nunca fogem
: são bem menos livres.

Prefiro a hipótese leviana do humano
habito essa morada de aposentos
suspensos sobre campos irreais
tocados por um vento de aventura
e meu quintal está plantado de erros.

Levito às vezes
e sofro
a concretude rachada que fulgura
mercúrio em minha argila.

sexta-feira, março 16, 2007

Os dias


Foto Flávio Damm.

 
Horas de sono
e o vento frio desfolha
desatento
as simetrias do mundo.
Só o tempo não dorme
e tece tortuoso
um labirinto de espelhos
por onde fogem
os fios da meada.
O céu gelado
fabrica horas de espera
quase brancas
e premedita o fim de toda noite
enquanto vela os sonhos.

Os sonhos, de que valem?

sábado, março 10, 2007

Quase



Por minhas próprias pernas
cheguei bem perto da estrela da manhã.

Traiu-me a ponte da tarde
antes da hora lançada
e revoadas de fatos sem futuro
se atravessaram entre mim e a estrela
o céu se fez escuro mineral
fanaram cedo as flores do desejo.

A viagem antiga só recomeçou
muito depois do meio do caminho
:
da estrela da manhã
nenhum sinal.

quinta-feira, março 08, 2007

Madurez



Posso ser ilha
se as pontes ruírem.
Comungo o mundo e esqueço
invento o sangue
as veias esvazio
graduo o peso segundo o solstício.
Por mãe de renascença tive a espera
sou vegetal, minério
bicho novo.
Tenho a força do vôo e do horizonte
um sol dentro do corpo
e me improviso.
Posso ser ilha
se as pontes ruírem.

domingo, março 04, 2007

Catecismo



As orações que chegam até o céu
são pesadas e medidas
pelos arcanjos mais graduados.
As dos humildes, ignorantes e inocentes
libertadas como passarinhos
vêm a ser
as nuvens cor-de-rosa da manhã.
Preces de classe média
pedem sempre venha a nós
: anjinhos irrequietos jogam futebol com elas
até deixá-las esquecidas pelos cantos do céu,
tristes brinquedos abandonados
varridos depois por santa Zita.
Raros pedidos e lisonjas de homens doutos,
ilustres cientistas, grandes mestres,
examinados com grande sisudez,
são arquivados em nuvens de chumbo
e com outros documentos alimentam
a plácida nediez das traças celestiais.

quinta-feira, março 01, 2007

Terapia

Troca os sapatos para não trocar de vida
se não pudesse contar enlouquecia
:
subiu no salto
e descalçou
os álibis.