quarta-feira, agosto 31, 2011

Fim de festa



Olha amor
tudo espalhado
e os momentos discordantes
papéis todos misturados
palavras fora de hora
olhares insatisfeitos
e limos angustiados.
Olha amor
nossos sentidos
parecem assim truncados
as mãos inúteis
em gestos
de interrogar o vazio.
Olha que estrago
zorra
zona
desperdício.
Olha que dor.
Olha que adeus sangrento
arrastado
arrancado aos pedaços
mutilado
torturado
rebuscando na desconexão
alguma força
feição própria ou configuração
que o resguardasse.
Olha amor
as flores murchas,
pegadas enlameadas
naquele velho chão de deslizar.
Olha a paisagem suja da vidraça
e o som do riacho antigo
se esvaindo
pelo lixo
pelas pedras
pela terra
agoniado de perder sua música.
As plantas secando amor
goteiras entrando em casa
a geladeira parada
a energia cortada
o vento penetra as frestas
de nossas janelas cegas.
Nossa louça desbeiçando
e a poeira se juntando
crescendo e ameaçando
de uma ameaça inocente
vagamente percebida
por olhos que já não veem
senão as próprias imagens
refogadas de tristeza.
Olha amor
tudo rachando
tudo a pique de ruir.
Olha que obra incompleta
abandonada
esquecida.
Olha o sonho carcomido
que esquecemos de sonhar.
Olha o filho que enjeitamos
o amor que não amamos
e os projetos postergados.
Olha as ilusões pisadas
quase tudo quase nada
e essas tardes da colina
rolando de morro abaixo.
Olha o fogo distraído
se esquecendo de queimar
e os espinheiros que crescem
abafam
cobrem
florescem
suas flores desiguais
e esse cheiro de velório
engolindo as damas-da-noite
e esse frio se estendendo pela praia
os tapumes no caminho
uma farpa no pé.
A alegria trancada a sete chaves
numa gaveta qualquer
e nós perdemos as chaves
uma a uma.




segunda-feira, agosto 29, 2011

Intervalos de abrir a poesia



Intervalos entre uma e outra tarefa
misturam alegria
terra presa nos sapatos
e às vezes uma surpresa inesperada.
Caem frutos maduros sobre as mãos abertas
pingos de chuva
olhares e intenções ao longo das estradas do futuro.
Abre-se o vento pelas portas
e a pele regenerada de carícias
pode se abrir ao amor
nos intervalos entre uma e outra
das incontáveis tarefas de um dia.

sexta-feira, agosto 26, 2011

Ao sol de agora




 Imagem sem menção de autor

Bem sei da noite
que vai chegar
asas escuras
paisagens foscas.
Sei que de sono
vamos morrer
durante as horas
de ouvidos moucos
o pensamento
desfeito em sonhos.

Agora
que é dia ainda
melhor pensar
pelos sentidos.
Melhor ouvir
o mar batendo
e mergulhar
nas horas vivas
enquanto o sol
roga por nós. 

quarta-feira, agosto 24, 2011

Metapalavrório


A todo gosto
servem as palavras.

Palavras fazem climas
cataclismos
espinhos de ironia
mas vadias
não obedecem a ninguém
e cada um as lê como bem quer.

Grandiloquentes, bregas, argentinas
francesas entendidas, sedutoras
entretecidas de wit na Inglaterra
mediterrâneas sem monotonia
polissemias do Leste em ideogramas.

Palavras são como a água
vão ao fundo
ao mais fundo do fundo
longe, longe
ao mais fecundo âmago do nada.

Juntas constroem pontes
monumentos
e são tijolo e cimento
de arquiteturas nunca repetidas
matéria e primas obras
de toda literatura e toda rima.

Sucede às vezes que palavras secas
se espalhem pelo chão
e quem as pise
ouça estalar vazios que elas dizem.
Aquelas que o vento leva
o mar recolhe
para escrever a música das conchas.

Nos vãos que os versos deixam entrever
metapalavras foscas, fugidias
a consolar de ilusões almas sozinhas
almas tristes ou tíbias
que em lugar de viver
lêem poemas.


segunda-feira, agosto 22, 2011

Insônia 2





Toda memória
manto sem costura
vive de imagens e asas
bordadas de migalhas.

Não sabemos ainda
do outro dia
ventos
nuvens e aves
enquanto assistimos ao filme da tv
e a solidão medita seus espelhos.

Sem dormir
e ainda assim
os sonhos estremecem.

O sono pesca histórias
pela noite
onde o silêncio singra.

sexta-feira, agosto 19, 2011

Metapalavras





Palavra
pode ser
lâmina quente
ao longe
arremetida
palavra como flecha
desferida.

Dita baixinho
palavra esbraseada
deixa na pele
marca tatuada.

Palavra pode ser
lâmina fina
cirúrgico instrumento
de fria intervenção
em algum momento
sem anestesia.

Falas às vezes
como quem deságua
estrelas matutinas
e então meu sono inteiro
quebra
como se fosse
vidro temperado.

quarta-feira, agosto 17, 2011

Salmo


Foto Adelaide Amorim.

Não foram claros
os jardins da manhã
antes de tua chegada
nem mesmo o meio-dia
brilhava meridiano.

Antes de vir
teceste o céu da tarde
para estender
noturna
nossa rede de prazeres.

Poema reeditado.

segunda-feira, agosto 15, 2011

Sinfonia



Calor subindo do asfalto
voz de vento
no fim do dia.
É lento o peso do céu
por trás de nuvens que correm
e pressentem
como se o cheiro da chuva fosse um lobo
faminto a se atirar entre as ovelhas.
Os toldos se contorcem.
O som escuro
é tormenta
catarse do verão.
O céu demora
em percussões
oboés afinados entre os galhos
festa de gatos no cio
chuva de grãos
em multidões de ruídos nos telhados.
As gotas
logo torrentes
cordas de água torcidas
lavam a terra
da música mais bruta.

sexta-feira, agosto 12, 2011

Palavras em folha


Muitas palavras resvalam
estalam debaixo dos pés
folhas secas.
O caso das folhas
não tem volta.
Mas as palavras
reverdecem
quando pensamos nelas
querendo captar
todas as suas saídas
e aposentos.

quarta-feira, agosto 10, 2011

Pele





(...)
daria todas as metáforas
em troca de uma palavra
arrancada do meu peito como uma costela
por uma palavra
contida dentro dos limites
da minha pele
(...)
Zbigniew Herbert





Às vezes durante dias não dizia nada
embaraçada em pensamentos velozes
emaranhados como galhos velhos de cajueiro
ou voando concêntricos em torno
de alguma coisa que não conseguia descobrir
como dizer com que palavras.
Às vezes falava coisas sem rumo definido
coisas do dia-a-dia – o carteiro as compras a cozinha
como se contornasse o território cego
da coisa que não dizia
contida dentro da pele que não sua
e mal respira.

segunda-feira, agosto 08, 2011

Previsão do tempo



Hoje
a previsão do tempo nos parece
uma inutilidade completa.
Quando chegam as notícias,
já deu para sentir
a tendência da temperatura
e a possibilidade de chuva ou sol.
Parece que a vida
agora
corre mais rápido
do que quando se vivia menos.

sexta-feira, agosto 05, 2011

Aventura


Tela de Pablo Picasso

Grande aventura
é entregar-se
aos braços do dia que começa.

quarta-feira, agosto 03, 2011

Essência

Hoje vi uma floresta
que o sol quase abandonava
enquanto seus olhos de luz
demoravam ainda sobre troncos
folhagens
ramos
pela estrada.
Hoje
percebi uma das essências possíveis de viver
chamada
enquanto.

segunda-feira, agosto 01, 2011

Os gatos


Mistério gozoso
é dividir o espaço.
Lá fora há um céu
e tudo está vazio
essa noite
calada
não tem lua.

Aprendi incertezas
e vigílias
em muitas noites.
Um espanto vem do dia
como um muro
e é túnica do tempo.
 

Mas os ventos passaram.

Os gatos dormem agora
saciados.