sexta-feira, dezembro 31, 2010

Moradas




Há muito não acontecia,
não é a insônia que conheço
é só o apelo da noite que me chama
ao contato frio da esquadria
entre o aconchego do quarto
e a doçura dessa escuridão
entre o terno e o imponderável.

O universo inicia sua música
diante dos muitos olhos lá do alto.
Há muito não precisava desses olhos
sua luz fosca
sobre a ironia dos grilos orquestrados
no jardim.

O céu não é azul.
O dia teve seus gumes
e há esses momentos.
quando nada se move
nada parece ter vida
além do allegro da água
do outro lado da rua.

Hoje choveu e há cupins sob as lâmpadas
onde a escuridão se dissolve
intercalada ao mundo equivocado,
furando a treva sem freio
na expectativa dos instantes
pairando sobre os túmulos
dispersos pelo mar.

São muitas as moradas deste mundo
e variadas as vozes que a manhã
vai acender daqui a pouco.
Enquanto a escuridão se move
maltrapilha
mergulho em tudo que existe
mas não vejo,
ouço canções inaudíveis
na tentativa de entender
por que aqui é dezembro
e tantas coisas pequenas
nos ocupam.

quarta-feira, dezembro 29, 2010

Eco



 
Sou meu resto
mas ainda acredito.

Sonho com a neve
véu sobre um bosque
vegetais rasteiros
sob a lua.

Todas as noites
desilusões semeiam
gatos cegos
como se ainda pudessem
voltar a enxergar.

Mas um amor não recomeça.

Ainda vive um resto
que respira.

domingo, dezembro 26, 2010

Paralelismos

O poema na folha do caderno
o vento o levou ao chão
e ficou a brincar com ele
como gato que brinca com um besouro
até que o besouro morre do brinquedo.

O poema jaz sob os pneus no asfalto
e o vento se diverte em outra janela.
Ao lado do besouro morto
o gato
toma contente seu leite na tigela.

quinta-feira, dezembro 23, 2010

Janela 3


 Dade Amorim. Os telhados azuis de Blois.

Do vento calmo que engana essa vidraça
resta a mentira da letra que se esconde
tigre desfeito em hastes desmanchadas.

O som do vento é um cristal quebrado contra os punhos
e o esquecimento demora na janela
fechada para sempre a todo pássaro.

Lá fora o vento se perde em lascas
nos voos do silêncio
contra a vontade das vozes separadas.

terça-feira, dezembro 21, 2010

Impermanência



Entre as bifurcações do caminho
vencido pelo cansaço
acabou desistindo
de encontrar estrada mais suave.
Entre chegadas e partidas
a vida já não tem o mesmo itinerário.

Entre os dentes
nem tudo será sempre
comida
simplesmente.

sábado, dezembro 18, 2010

Intervalo

O prédio em frente à janela entristeceu
vestido da luz dessa tarde inexplicável
e entanto doce
e a amendoeira parece repousar
movida pela brisa e sem os pássaros
que a visitam toda manhã.
Um prédio que medita
pensado por uma amendoeira silenciosa
é a referência maior deste momento da vida
em que procuro legitimar a paz
e o intervalo de amor que me rodeia
a mim, que há muito perdi a fé.

quinta-feira, dezembro 16, 2010

Acontece


 












Encontrada a passagem perdida
outro viaja
e quem pagou por ela volta à fila.

quarta-feira, dezembro 15, 2010

Das sombras


E quando às vezes se está
praticamente morto
mas o sangue continua
seu percurso
indiferente?

Nada em nossa matéria
músculos, glândulas, ossos, cartilagens
parece perceber o que acontece.

Lá fora o tempo completa sua curva
como se não existíssemos
e pouco a pouco
o gelo se alastra pelos membros.

domingo, dezembro 12, 2010

De gavetas e gaiolas




A gaveta esquecida
retém lances de dados
jogos refeitos
e devaneios datados
de alguma primavera.

O corpo é um limite
e adivinha
mares e voos
preso à monotonia
da respiração necessária.

Respira na gaveta
uma existência de pássaro.
Aberta uma gaiola
o pássaro tem medo
de se atirar no vazio.

quinta-feira, dezembro 09, 2010

Rasura

 











Imagem sem menção de autor. Pintura da noite.

Como se o som dos passos na calçada
fosse apagando as lâmpadas uma a uma
busca refúgio para o tédio de outra noite.

Um bar desconhecido
onde as pessoas não se voltem
à vista de um estranho.
Aquele bar
onde possa recuperar suas medidas
e o silêncio atenda a seu chamado
antes que a noite consuma
outra de suas mortes provisórias.