quarta-feira, junho 29, 2011

Poeta 5


Alguém me disse um dia
poeta é um encapsulado
dentro de si mesmo
incapaz de consideração
com o resto do mundo
e das pessoas.

Pensei nisso
como se fosse verdade
mas não serve para todos.

Cheguei então
à mais conclusiva conclusão.
Se for poeta
pode ser
ou não
um mórbido egocêntrico.
E se não for
também.
A raiz narcisista
está em outro lugar
e pode ser
ou não
muito fugaz.

Pergunto então
que diferença faz?

segunda-feira, junho 27, 2011

Poetas 4



I’m not one of them.
Nem adiantava explicar mais
no mau inglês
que me cabe.

O cara olhava meio divertido
meio espantado
e com certeza
percebeu o humor instável
com que tentava escapar.
Queria saber por que
alguém escreve poemas
sem ser poeta
ao menos por um tempo
ao menos
naquele exato momento.

Sometimes I wonder
ele dizia
como na canção
e acabamos rindo.

sexta-feira, junho 24, 2011

Poeta 3

É fácil fazer de conta
e posar para fotos
como se fosse.
Basta um ar etéreo
um olhar distante
ou um sorriso de enigmas
irresistíveis.

Contar histórias com ímpeto
de artista
ser romântico sem culpa
e simular dores invisíveis
fazem parte do avatar.

Ajuda ter cabelos descuidados
talvez um ar sofredor
insatisfeito
gestos incompreensíveis
inusitados
e alguma habilidade com as palavras.


quarta-feira, junho 22, 2011

Poeta 2

Poeta perene
não existe
ou se existir
é Deus.

Alguém pode ter
alma de poeta
e dizem que alma
uma vez nascida
dura para sempre.

Poeta eventual
no dizer de Auden
são todos eles.

Se nada disso for verdade
melhor esquecer
e não se achar
melhor se perder
entre os poemas.


segunda-feira, junho 20, 2011

Poeta

 
I’m not a poet
eu disse a um cara.
Veio me perguntar se eu era
e não entendia nada
dos poemas
que viu
mas não conseguia ler.

I’m not a poet
um lado chorando litros
o outro cheio de garra.
Pode ser que o lado líquido
se candidate
mas o lado enxuto
não acredita.

Pode ser que a certeza
de que um dia vai morrer
sem saber
do que pode rolar
em sua vida
faça de alguém um poeta
eventual.

Mas como será
ser um poeta
sempre?

sexta-feira, junho 17, 2011

Inexato


E se a manhã fosse o começo
não de uma segunda-feira
mas dia desnumerado?
Manhã das horas queridas
a revirar cada luz
e olhar com calma
chuva escorrendo pela calha
dança de imagens
sede das poças dágua?

E se os pássaros voltassem
sem antes nem depois
a qualquer hora?
Quem sabe a noite
viajaria do fundo de sua música
até perder-se em luas de silêncio
dobraduras de asas
aos olhos das janelas?

Essas visões que hoje o cansaço apaga
quem sabe sobreviviam?



Poema reeditado.


quarta-feira, junho 15, 2011

Vigília

Duy Huynh. Dreaming under the moth moon.
 

São muitas incertezas.

O barco singra a noite
na certa rumo a um naufrágio
como tantos
por onde o coração
quase lhe escapa.

O tempo é uma dúvida
que o próprio tempo esclarece.
Não é justo adormecer
sem tê-lo ouvido primeiro
e ele nunca responde a uma pergunta
antes da hora programada
que ninguém conhece.

Não há que confundir o tempo e os relógios
e não existem respostas imanentes.

Ele tem na cabeça
pedras
que pareciam vir no vento
mas sabe
o inesperado que esvoaça pelo céu
vai rasgar as asas que o impeçam.

A paz
sempre ilusória
refletida num espelho
imaginário.

segunda-feira, junho 13, 2011

Banco de dados*


O banco de dados do mundo
começa com o arquivo da gênese
terra e água escorrendo
nas gavetas do Senhor.

Todo homem tem seu tempo
mas nem todos
espremem seu suco até o fim
e o que resta desses
é um arquivo morto
ou quase isso.

Os ônibus lotados
datam de mais de um século
mas as mulheres preferem
olhar os ônibus
e tudo o mais
de suas próprias janelas.

Mulheres estão sempre buscando alguma coisa
: maçãs, serpentes, vestidos
homens extraviados
ou filhos mortos
sorrindo em suas fotos
até que no jardim nasçam lápides novas
datadas de algum dia
que a humanidade não quer lembrar
a não ser talvez
em shows de rock e na ópera da temporada.

Enquanto a criação descobre
todo dia
a tecnologia sempre nova
ora mesclada à science fiction
e o cinema desdobrado na plateia
o mais está convertido
em pasto
até o fim dos tempos
no imenso casarão cheio de portas
onde habitam os que
até agora
conseguiram escapar

 * Poema reeditado.

sexta-feira, junho 10, 2011

Cântico

Um cântico secreto
ungiu a lua
sacramentou a carne
em seu delírio
e destinou toda a noite
a duas vidas insones
e uníssonas.

Outono do Rio



O vento é frio.
Ecos avulsos de vozes distantes
contam sua pressa de encontrar abrigo.

Da janela olha sem ver
cenários desenhados
muros calçadas
as árvores sem folhas
que vão servir à construção
do inverno.

Quando chega o outono
do mar aos morros
as vidas da cidade compõem
constelações
e os olhares entristecem um pouco
para a estação da espera.

quarta-feira, junho 08, 2011

Biografia


Há uma curva de estrada
como de vértebras.
Um corpo já cansado
de rotinas
num dia derrotado.

Há uma praia deserta
capaz de pensamentos
gaivotas de voo forte
aos olhos saturados
de inverdades.

Caminhos para o nada
céus de sono
amores descartados
segundas ordens sem uso
e em todos os momentos

desassossego
décadas inúteis
e a qualquer tempo
passado desapego
desmentidos.




segunda-feira, junho 06, 2011

Rostos, máscaras


Rosto cheio
convencional
à luz do dia
rosto
de conviver.

Menos cheio será
o da tarde
quando volta do trabalho
à noite
se vem do bar
ou de uma festa
modelado
de pensamento.

Depois
na hora do sono
em branco
o rosto.

Sem falso riso
ou maldade
se não precisa
impressionar
e muito menos
mentir
no máximo
um rosto pode estar
tranquilo
adormecido
ou molhado de lágrimas
que afinal
podem correr
livres.