quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Sentidos

O que desejo dizer
não cabe numa folha de papel
e se desdobra aos ouvidos
que minha voz não alcança.
O que desejo dizer
delira em longo alcance
e é quadro que se esparrama
muito além de sua moldura.

O que preciso dizer
ousa atravessar montanhas
e se alonga pelos rios
em dias de maré cheia.
O sentido de escutar
é muito pouco
tenho que reconhecer
é melhor nem começar.

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Prisão

No teto da catedral
esvoaça
pássaro de cristal.

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

Seca


Imagem Marcia Cardoso.

As cinzas
levou o vento
secou a lama
e o mundo asséptico
ficou a cara da lua.

O jeito é esperar
pelas nascentes.

domingo, fevereiro 17, 2008

Moça de Ana Rech

A dona da pequena loja
de Ana Rech
não estava lá.

Pensei que ia revê-la
na fria manhã luminosa
por trás de seu balcão de bugigangas
como antes:
no canto, o chimarrão.
magrinha, baixa e esperta
olhos inquietos
de avaliar os clientes num relance.

A loja vagamente recendia
à folha verde e amarga
que a mantinha alerta e acesa
para os lucros.
Entráramos curiosos
e apenas desejávamos saber
como vivia o comércio
numa cidade pequena
e caprichosa.

Ao lado da casa de madeira,
telhados angulosos europeus,
as trepadeiras pejadas de flores
quase sorriam.
Dentro da loja no entanto,
a moça não sorria
calculava
movida a mate verde.

A moça esperta da loja de Ana Rech
– que pena –
não está mais no balcão.

sábado, fevereiro 16, 2008

Cidade



Um ônibus ronrona
aço irritado
entre ruídos sem nome.

De uma janela
tímida espia a esperança
e se recolhe.

O céu toldado resume
as ameaças do mundo
nos galhos da amendoeira.

Alheio a tudo o menino
pedala para bem longe
uma canção de infância
e salvação.

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

Aceno

Há dias que não te via
e hoje vi tuas mãos espalmadas na vidraça
a me acenar com os olhos.

Perfil


Não sabe onde ele está
mas sabe dele
e não esquece
sua fuga ao tédio
e às iras de outras mulheres.

Talvez esteja agora no café
onde casualmente se encontraram
quem sabe em seu estúdio
lugar de amores clandestinos
ou num cinema de bairro onde
no escuro
segue a busca sem fim
que é sua vida.

Lembro dele como de um personagem
de ficção
um anti-herói perdido na cidade
: pés de barro
as mãos irresistíveis
e um coração de vidro bem barato
que cedo ou tarde alguém há de quebrar.

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Lembra Cecília

Lembra Cecília
o vento levando as folhas no outono
para onde não se sabe.

Lembra Cecília
o tempo que leva a mim
de mim.

Lembra Cecília
o espelho inesperado
a nova face da moça do retrato.

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Presença


Henri Matisse.

Em cada canto da casa
tua presença perdura.

A música da noite te recria
e apascenta fantasias
desses rebanhos de sonho que inventamos.

A cada dia floresce e frutifica
toda a fraqueza da carne
nossa força.

sábado, fevereiro 02, 2008

Gume


Dessas palavras tantas que dissemos
uma caiu no chão
e assim de perto
parecia sem gume.

Mas a palavra dita em hora errada
nos enganava
fez ruir o tempo
soterrou a eternidade