quarta-feira, junho 30, 2010

Andorinhas

As andorinhas brincam de coral
piando desafinadas sobre os fios.

Asas sem majestade
melhor que as águias encobrem o sol.

Um bando de andorinhas
explica a existência mínima dos corpos.

dade amorim
Poema reeditado.


*****

Poema-amigo


Quando li um poema de Daniel Francoy pela primeira vez, em 2004, fiquei de queixo caído. O blog dele naquele tempo se chamava O Desaparecido. Nesse blog, chamo a atenção em especial para o excelente poema sobre Samuel Beckett.

Daniel não tem o perfil do blogueiro dinâmico, que posta todo dia, comenta e segue os blogs dos outros. Sua intenção é publicar, dar a conhecer seu trabalho. Desconfio que a vida de Francoy gira em torno desse trabalho, o que muda muita coisa, porque fala de sua personalidade e da necessidade da poesia em sua vida.




Pássaros



Sei das revoadas de pardais grizes
a invadirem as copas das árvores
e sei das centenas de andorinhas que
- à primeira centelha do calor -
movem-se no céu, e movem-se tão compactas
que é como se o céu se movesse
e ao olhar para o alto, o que os olhos bebem
é migração e queda.

Das gaivotas também sei: não são brancas
como as gaivotas de poemas.
Eu as vejo: pássaros sujos em praias sujas
a disputar o que os turistas oferecem
e a morrerem nos canais onde a água impoluta
o mar alcança – imundíce plúmbea
das vagas a rebrilhar sobre o arrebol.

E há o abutre.

Há o morto abutre à margem da estrada:
encontrei-o ao amanhecer, indistinto
da terra e da relva revolvidas;
reencontrei-o ao poente, tendo ao fundo
o céu frio, o céu sem raízes,
o céu que é um véu de cores ávidas
a desvanecer.
E sei que amanhã lá estará o abutre:
ainda morto e ainda arraigado
ao que renasce.
Sei que o reencontrarei ao ocaso
e não haverá dor
em mim ou fora de mim por sua morte.
Quando muito, em hora de cansaço,
haverá o desejo de transformá-lo em melro
e de cantá-lo como se melro fosse.

Daniel Francoy

segunda-feira, junho 28, 2010

Augúrio



Quando o céu invade o quarto
perdulário de voos e pétalas e vento
e é de manhã
e saltam das paredes espelhos
insensatos
no mundo novo filtrado
pelos olhos
os mares derramando as

vozes loucas de sereias mudas
é que a manhã promete.

 
dade amorim
Poema reeditado.




*****


Poema-amigo - Soledade Santos

Há alguns anos acompanho o trabalho de Soledade, sua dedicação ao magistério, a sensibilidade que predomina em seus poemas. Sei de sua indignação contra os maus políticos de sua terra (Soledade é de Portugal), aliás muito parecidos com os nossos. Conheço o carinho que dedica à Jade, uma bonita gata cinzenta que lhe faz companhia durante algumas horas do dia.
Seus poemas estão também na Hospedaria Camões e na Revista Germina de Literatura,entre outros sites.
Vale a pena ler seus poemas, sempre vale.



Swing para manhã de sol

na casa vazia
eu deus o mundo por fazer
e danço


swingo com pano
do pó aspirador
cadeira e canto
swing enche a minha casa
e roupa suja espalhada
no chão misturada
com lápis legos ferraris

ó sol tão amarelo
na janela
a roupa fumega
varal colorido manhã de sexta-feira
swingo com ella oh baby
sing me a swing song and let me
dance

que a vizinha de baixo é surda creio
pois não se queixou nunca nem
dos gritos à noite
dos gatos

Soledade Santos

sábado, junho 26, 2010

Corpo e cidade















O corpo entregue à cidade
estreia sensações de luz sombra
e ruas conjugadas
em sol, poeira e fumaça,
os passos misturados.




O corpo que descansa
deixa a cidade distante
como um presente esquecido
na janela.
A cada instante revê as cores
formas e as sombras
os ruídos se alongando pela praia
que o mar engole.
Sonhar vem de surpresa
do labirinto guardado por um touro
e o touro tem uns olhos de criança
em contas feitas de matéria escura.
                                       
                                
                                                                                                            dade amorim
Foto R.C. Costa. Chove em BH.
Poema reeditado.







***



Um Poema-amigo que vem de Portugal


Susana Miguel foi uma descoberta dessas que só mesmo a Internet torna possíveis. Não conheço livro dela, sei pouco a seu respeito. Mas o que sei, quase diria, me satisfaz tanto que nem pensei em descobrir muito mais, porque me parece suficiente para que já lhe queira muito bem.

O poema que escolhi está datado de 12 de março deste ano.






H. Matisse.


às vezes aquilo que dizíamos fazia muito pouco sentido
para os outros. ficávamos surpreendidas com o número de eléctricos
que passavam àquela hora e num domingo não era habitual apetecer-nos rir e
inventar uma paisagem no tempo que nos lembrasse
um destino, a antiguidade rodeada de casas e de séculos a crescer à altura
dos olhos de quem as conseguisse ver. e ali estávamos nós as duas
a imaginar uma vida para cada um dos botões que íamos vendo passar
cosidos e bem seguros aos casacos de outras mulheres. penso
em ti e na saudade a única maneira de amarmos as metades e escrevo
(agora forrada a tecido) nesta caixa: apontamentos
sobre a morte e um coração.
   
                                                                               Susana Miguel

quinta-feira, junho 24, 2010

De amor

Falem de um amor recente
ou dos de outrora,
antigos que foram novos.

Qualquer poema de amor
é sempre agora.

dade amorim
reeditado







***



Poema-amigo – ou novo amigo, porque esse é um dos mais recentes poetas que descobri na rede: João Renato Marino. Autor de poemas que falam da vida, do tempo que passa, do aprendizado que significa viver, mas fala com frequência (e bem) das coisas do amor.

Vale conferir.




Foto Margarida Delgado.



Após o amor

Que não percamos – o após – em perguntas
que dão o escuro à cama e maculam
a quietude e a luz da lua,

nem repassemos antigos desastres
ou elevemos discursos
com graves e agudos
de elétricos pandeiros;

sejamos apenas seres
em afeto, com espíritos leves
e cabelos desfeitos, no silêncio
dos desejos satisfeitos.

Há pouco, lá deixamos pernas,
lá deixamos braços, lá deixamos
sons, e tanto corpo
ambos lá deixamos, que até nosso peito
ofegante lá ficou,

e meu olhar perdido agora repousa
tranquilo, num resto de rosto, num resto
de seio, na paz do teu aconchego,
com o desumano desejo

de que este amor
maduro permaneça
sem medo e derradeiro.

João Renato Marino

terça-feira, junho 22, 2010

Brincadeira



Imagem Ana Maria Niemeyer.



Palavras
asas e manhas
capoeira.

Gato e sapato

nem sempre são
bichano e artefato.




dade amorim
Poema reeditado


***


Poema-amigo

Se penso em Líria, penso palavras certeiras/espertas/eficazes.
Ela é assim: lírica Líria sagaz, e aporta breve ao Porto mais seguro dos poemas bem resolvidos.
Um prazer, sempre.



dos pesos e desmedidas

líria porto


boa voz
talentosa
bonita
rica
e a outra
dio santo
desamada
desprovida

) vário
é o desígnio
do adeus (

domingo, junho 20, 2010

Ao som de celos

Tingida de desejo
uma alegria sonsa desdobrada
nesga de lua em janela.
O corpo se despedaça
em harmonia de linhas quebradas
como se ouvisse celos
na escadaria da Penha,
e chove
no último estágio da espera.

                    dade amoreim



Poema-amigo

Márcia Maia, uma pediatra do Recife, tem livros publicados e prêmios, todos merecidíssimos, em suas prateleiras.
Vem às vezes ao Rio, e numa dessas vezes nos reunimos com outros amigos. Foi uma alegria, uma noite de boas trocas e encontros felizes. Mais ainda que por essa boa lembrança, Márcia aparece hoje no Poema-amigo com a bela poesia que escreve em seus blogs, onde primeiro nos conhecemos, e em tantos outros sites, lado a lado com alguns dos melhores poetas e escritores da web.




Soneto de entrega

Amar é entregar. Tudo te dou.
Não porque tu me pedes porque quero.
Pois te sei livre em mim portanto espero
em ti livre perder-me: aqui estou.
Quero o grito o encanto o mel o vôo
oceano e deserto reverbero
sob o toque das mãos tuas: bolero
só audível a mim quando em ti sou.
Mais que flor ofertada aberta ao falo
sou suor sou galope e contra-canto
o teu corpo no meu corpo abrilhanto
e em mil sóis saberei multiplicá-lo
:
gozo imenso eterniza a cavalgada
e enrubesce de inveja a madrugada.

                                   Márcia Maia

sexta-feira, junho 18, 2010

A mesa posta



Foto Jean Haute Garonne.



Alguma coisa se aflige
no ato mero de estender a toalha
sobre a mesa.

Essa desordem
transtorna o mundo em montanhas
atinge a várzea
e triste se contempla
até que o céu se desdobre
azul
(o azul é uma canção desatada
que existe mas não canta).

Os pratos postos embora
alguma coisa exista
que nunca se completa.

Alguma coisa é fuga
e implora
sem conseguir o exato
a imagem submersa
extrema de cansaço
e a descoberta
do que sempre existiu
tumultuado e mudo
e falha
à mesa posta.

dade amorim
Poema reeditado.



***

Poema-amigo – dia de Nydia Bonetti

Não há muito tempo que conheço Nydia, mas conheço Nydia desde que comecei a ver o mundo por minha conta. Não seria mentira dizer que gosto muito dela, embora só de poemas seja feita nossa amizade. Poema é a coisa mais ligada ao afeto que pode existir, porque é retrato e é espelho.


(XVI)


a água na chaleira ferve
é madrugada já - a erva é doce
a camomila nem tanto
tisana de perfume suave
perfeita para mentes distônicas
(talvez me adoce a alma)
robótica a mão apaga o fogo
os olhos pesam
(como o nada é pesado)
autômatos os pés se arrastam
zumbi o corpo se atira na cama
mergulho suicida
no vazio onde as dores evaporam
até amanhecer

quarta-feira, junho 16, 2010

Manhã 4



O dia que espera à tona,
transparente de silêncio,
é um bote armado por insetos
à espera de uma presa, de
alguma voz que reative os mitos
e seus motores estreitos e dentados.
                                                                                                                 dade amorim

***

O poema-amigo de hoje

Nesta comunidade de poetas, em que o bem-querer se constrói pelas palavras, às vezes se encontra alguém que, antes das palavras (ou seria por causa delas?), se tornou amigo de presença.


É o caso da Carol Timm, que também mora no Rio, o que tornou possível a partilha de algumas boas experiências que sempre têm a ver com o que se escreve.


O sono sem sonhos

De repente o silêncio
atacou-lhe a existência
eram borboletas de chumbo
a quietude pesava-lhe tanto
que sentiu-se enterrada
na jaula do tempo

Retícula da folha
que não é mais folha
resíduo da existência
átomo ou energia
o que não é mais
haverá noutro lugar?
será continuidade?


Na praça implodida
pelo homem-bomba
nada sobreviveu, hoje
escondida pelo monolito
nasceu uma flor retorcida
terá o amor encontrado
na sua ausência um lugar?

A noite é contínua
não podemos detê-la
nem fugir da escuridão
mesmo quando voamos
em direção ao sol
manhãs de primavera

O sono sem sonhos
se aproxima de nós
:
desperta assustada
não quer dormir ainda
esta longa noite
sem estrelas

©Carol Timm

segunda-feira, junho 14, 2010

Sempre, talvez





Egon Schiele. Par.




Mesmo quando o amor sonega impostos
e às vezes emite cheques no vazio,
aposta e blefa
sem brio nem cuidado
ou dorme sem cerimônia sobre os sonhos mais macios
de seu apaixonado,
ainda assim
a gente insiste em seu nome
abençoado.
                                                        Dade Amorim





***


Lara Amaral


A extrema juventude de Lara Amaral não impede que sua poesia nos chegue amadurecida e sempre, sempre muito bonita.

São parte dela a generosidade e a palavra mais sensível, que brota espontânea e natural.





Borra de chá
 
Se me derramei
foi chá quente
não sinto mais a capa que envolve meus lábios
sou despelada pelo calor
ou trincada pela falta dele

antes que o chá esfrie
termine o que ia me dizer
nem gosto tanto de bebê-lo
mas é necessário
enquanto as horas passam e eu te escuto
tento me interessar

sua bebida já é fria, cheia de gelo e um brilho âmbar
me embebedo só de olhar
seus olhos esfumaçados pelo meu líquido
já quase frio

dou um gole como ultimato
dificilmente você termina a conversa
enrola um pouco mais o meu tempo
mas pretendo manter meu silêncio
enquanto a bebida desce me amargando
leio seu destino no fundo da xícara.

sábado, junho 12, 2010

Hipótese

O dia pode chegar
quando alguém diz
talvez
ou nunca mais
e não se sabe ao certo
mas supõe-se
que a hipótese das flores
será no entanto
intacta e delicada
e o dia não pede nada
além de algum retrato
no ângulo certo
alguma obra bem-sucedida
ou um amor fervoroso
ora calado.

O dia se resolve
como todos
e ninguém saberá
de onde veio a música
se a chuva foi proposital
e à noite algum luar
enovelado em nuvens
tão passageiro
leve e absurdo
por cima das roseiras
sobre o corpo da terra.


Este é um poema reeditado, por duas razões:
primeiro porque gosto dele; segundo, porque achei que faz
alguma ressonância com o poema de Nílson Galvão
que trago para o Poema-amigo de hoje.

Nílson Galvão escreve no blog Blag, leitura das mais indicadas.


O peregrino dos dias

 
A eternidade está morta,
dizia o filósofo com os dentes
cerrados. Quanto a mim,
creio ter assistido a seu enterro
naquele dia fatídico. As pessoas,
inocentes, não suspeitavam de nada
e seguiam cultuando esse grande
e poroso espírito, a eternidade.
Fiquei ali perplexo, enquanto bebia
a morta. A eternidade exalava
distâncias. Meu coração escutava
miríades de estrelas e mistérios
da luz. Cantava junto com as
carpideiras, imitava seu ofício.
E ali a eternidade, em meio às
 flores amarelas e brancas
a murcharem. Meu coração escutava
o trespasse, fiquei velho da noite
para o dia, fiquei cego como têm se
tornado cegos os que insistem. Andei
pelo mundo com a lanterna inútil,
clamei por algum alento e nada:
a eternidade estava morta, era
inarredável, estávamos órfãos
em definitivo.


quinta-feira, junho 10, 2010

Três pra lá, três pra cá











Costurado entre as vozes
o silêncio
tenta passar despercebido.

Crime

Já é rotina
todas as noites
a sombra mata o dia.

Indicativos

Tinha muitos espelhos pela casa
pra não perder de vista
sua terceira pessoa do indicativo presente.

Tédio

Tédio à tona
o silêncio da noite
é água parada.

Gato

O olhar de um gato distraído
confessa mil telhados
e jardins insuspeitados.


dade amorim


***



Haicai-amigo



Carlos Seabra é autor de um livro só de haicais (Haicais e que tais), cada qual mais inspirado.



Alguns exemplos do trabalho de Carlos Seabra, cujo perfil pode ser encontrado aqui:


004 Torneira

pinga torneira
tic tac do relógio
luz com poeira




006 Narciso

lindo sorriso
imagem no espelho
seduz Narciso




019 Teia

micro na teia
navega na internet

grão de areia


  
028 Sonho

sonho colorido
o sol dança com a lua
você comigo




123 Saudade

travesso gato
com saudade do dono
mija no sapato





segunda-feira, junho 07, 2010

Da vida



A vida é breve
já se sabe
mas que seja leve.


Abrir as asas
sempre cabe
nas horas mais rasas.





O poema-amigo é de nossa querida Nina Rizzi, sempre bem-vinda.



noturno da rua da glória
nina rizzi

há centenas de esquinas esperando,
prontas pra ouvir - te amo.

mas ele, não mais, nunca mais
me diz - puta.

sábado, junho 05, 2010

Olhares




Olhares que se entregam
padecem o anonimato aceso
de uma febre
nome tecido a fogo e pensamento.

O chão baldio onde as palavras caem
inverte as estações semeadas pelo vento.

Olhares que suplicam
suportam a pele em pétalas se abrindo.


Hoje o poema-amigo é do baiano Assis Freitas:

Canção de entreter girassóis

Deste mundo que não me tenho
Porque não me pertencem as auroras
Queria te oferecer umas prendas doces

Um pequeno travesseiro de assombros
Para que repousasses
No desassossego da palavra

E quando acordasses tardezinha
No sol alto de uma manhã infinda
Te fizessem festa nos olhos cansados
Meu espanto de menino e esta rubra cantata