domingo, julho 29, 2007

Pavana


E. Munch. Melancolia.


Bailarina
corpo sem peso
na sapatilha de ponta
estrita borboleta
– quem te tirou pra dançar?

Acima da plateia
entre seus voos
um duplo imponderável de matéria
: corpo que dança
acorde inacabado
e uma pavana sem fim
de solidão.

sábado, julho 28, 2007

Momento

 

Além da vidraça
a mão do vento
empurra o mundo

Nesses momentos
a felicidade
mora numa xícara de café.

quarta-feira, julho 25, 2007

Tarô




A esperança é a blusa de sol
da tarde que perdura
e o mundo despe
quando chega a verdade.

O mundo gira e tritura
com seu peso
toda ilusão.

terça-feira, julho 24, 2007

Metapalavra

A todo gosto
servem as palavras.

Palavras fazem climas
cataclismos
espinhos de ironia
mas vadias
não obedecem a ninguém
e cada um as lê como prefira.

Grandiloqüentes bregas argentinas
francesas entendidas sedutoras
entretecidas de wit da Britânia,
outras mediterrâneas
de outras terras
polissemias do Leste em ideogramas.

Palavras são como águas
percorrendo
o mais fundo do fundo

longe longe
ao mais fecundo âmago do nada.

Juntas constroem pontes
monumentos
e são tijolo e cimento
pinturas coleções e arquiteturas
matéria e primas obras
de toda literatura e toda rima.

Sucede às vezes que palavras secas
se espalhem pelo chão
e quem as pise
ouça estalar vazios que elas dizem.
(Aquelas que o vento leva
o mar recolhe
para escrever a música das conchas.)

Nos vãos que os versos deixam entrever
brotam metapalavras toscas fugidias
consolo e ilusão de almas sozinhas
– das almas sonhadoras
tristes tíbias
que em lugar de viver
fazem poemas.

segunda-feira, julho 23, 2007

Predição


Escher.


Uma nesga de futuro
se instala
em cada palavra.

Num dia que não se sabe
quando vem
secreto
o futuro
devora quem o decifra
desmente quem o procura
e além de tudo
derrete todo enigma.

sábado, julho 21, 2007

Epígrafe



Cinzas do tempo
pousam
em todas as histórias,

sexta-feira, julho 20, 2007

Visão



Maria Júlia


O dia se esvaiu
e ainda resisto
presa ao batente da porta
por onde vislumbrei
o paraíso.

quinta-feira, julho 19, 2007

Impermanência


Pablo Picasso.

Veio do mar
e atravessou o arco do dia
nos olhos luz
sol entre os dentes.

Bebeu a tarde
nova de amigos
e anoiteceu
de amor
na praia.

Cruzou a noite
da lua nova
e foi paixão
da maré mais alta.

Mas todo dia
marés e luas
se desencontram.

quarta-feira, julho 18, 2007

Esfera

Os calendários guardados
escondem roupas
que já não vestem o presente.

Num aposento secreto
se refazem
fios soltos do bordado.

O passado engendra o novo
e a história recomeça a cada instante.
Era outra vez uma vez.

Já vi esse filme antes.

terça-feira, julho 17, 2007

Asas


Imagem Justin Bua. Guitarrista pop.

Ressoam vozes
de anjos dementes
velando os vivos.

Vestem de roxo
e quase nunca
usam as asas.

Ando hoje em dia
na doce companhia
de anjos tristes.

segunda-feira, julho 16, 2007

Cena

Da colina
só se viam mar e céu
e uma enganosa placidez
a ondular lá embaixo
enquanto o vento tecia
palavras entre os cabelos
e o poema se erigia em carne.

O tempo da paixão
é o tempo em que se tem tudo a perder.

sexta-feira, julho 13, 2007

Voto



Rolo nos dedos um cigarro
que não se repetirá
sabor e brasa perecíveis
sujeito a um juízo repentino
e irrevogável.

Que ao menos não se apague
e todo em fumaça azul
se evole.

quinta-feira, julho 12, 2007

Reencontro


E. Munch. O beijo.

Os cânticos do céu
são todos meus
quando tu estás.

Sete virgens e seus véus
nesta noite
serão tuas.

quarta-feira, julho 11, 2007

Cidade



As linhas de minha mão
se estendem pelas calçadas da cidade
e bifurcadas desenham quarteirões.

As praias de meu desejo
sem promessas
surgiram de repente numa esquina
e imprevistas se cumpriram.

Nesta cidade traçada em minhas mãos
há sempre o mar
rosais pelos jardins
e brisas a alimentar as minhas forças.

Até me alegra
saber que os cruzamentos
predizem riscos
nos sinais da vida
: sigo o rastro do perigo
nas trilhas que o povo abriu
como feridas.

Não quero descobrir
aonde me levam luzes falsas
encontrarei talvez horas malditas
de lâminas na carne.
Ainda assim tudo que mais desejo
é a cidade das surpresas
sempre a brotar em milagres
das linhas de minha mão.

terça-feira, julho 10, 2007

Sazonal

Minha memória floresce
em pleno outono
jasmins brancos e frios.

segunda-feira, julho 09, 2007

Noturno


Foto Natália Correia. Noite de lua.

Marcas que fogem
trilhos de trem
estendem o tempo.

Rios correndo
lavam a terra
leitos do mundo.

Entrecortada no céu
meia-lua adormecida
perfuma a noite.

sábado, julho 07, 2007

Confissão


Foto Charlie Schreiner.

Confissão

Amo-te às vezes como quem perdoa
uma ilusão, mentira ou uma ofensa
com esse amor que te parece à toa.
Te amo talvez bem mais do que tu pensas.

Amo-te às vezes como quem concede
ou quem desdenha sem querer comprar.                                                                                 
Te amo a um modo que o amor não se concebe
como um favor prestado por amar.

É que esse amor imenso me supera
e fez de mim seu guarda e alicerce
enquanto esconso te espreita feito fera.

E quanto mais o escondo ele mais cresce
e ronda atormentado pela espera
e te devoraria se pudesse.

sexta-feira, julho 06, 2007

Estante



Às vezes fecho o livro que estou lendo
para expurgar fantasmas
que me invadem.

Os livros têm licença de mentir
ou sufocar de verdades quem se arrisca.
Explicam nossas culpas
nos tocam sem cortesia
e atingem os sentidos.

Às vezes me percebo
nas palavras
outras sofro
quando sem compaixão
nem saída
a vida escrita
esmaga um personagem.

Palavras que se atraem
escritos e leitores
dão-se as mãos
para evocar momentos
e se bifurcam num jardim de Borges
multiplicados
perseverantes
e vivos
nas estantes.

Em sua secreta música
uns são baladas
outros sinfonias
outros ainda
desarmonias da linguagem.

quinta-feira, julho 05, 2007

Mariana

Um traço de vida à espera
nos botões de madrepérola
e os cadernos sob o braço
um brilho de sol no olhar
e um sorriso feminino
como um beijo.

O que espera Mariana
da vida que numa esquina
espera por ela ainda?

quarta-feira, julho 04, 2007

Sinais



Sinais

Entram de manso
no barco imenso da noite.
Na trilha dos desejos
brotam palavras e rastros
marulhos de uma tarde
aquecida de estrelas.

Nada do que disseram
era verdade.

Em cada gesto
o brilho manso da noite
a casa pronta
a porta destrancada.

terça-feira, julho 03, 2007

Maçã


Ana luisa Kaminski. Transe.

Um ponto cardinal
dança em gotas de sol sobre a vidraça.
O inseto olha a maçã.
Nada do que disser o poema
tem o poder do olhar.
Nenhum de nossos temas
consegue mais do que mapear
a força do desejo
e o medo de cravar
enfim
os dentes na maçã.

domingo, julho 01, 2007

Ludwig e Rainer



Beethoven me passeia pela sala
examinando estantes
e olha as rosas-chá por uns minutos.

Percebo um brilho de alegria em seu olhar
logo abre o livro dos poemas de Rainer
que estive lendo à tarde.

Pouco a pouco
os versos o transformam
e ele sobe
translúcido e alado
e some no azul escuro da noite que começa.