sábado, junho 30, 2007

Poema sem voz


Foto Helen Levitt.

Nenhum poema canta o desatino
nenhuma voz, ainda que clandestina,
pôde falar da pele que acendemos.
Nenhuma loa se eleva transgredida
a essa paixão calada e desmedida
que se esfacela ao vento nas calçadas.
O que dói mais é o que não mais existe
e esse pranto amargo que persiste
anônimo nos olhos sempre secos.

sexta-feira, junho 29, 2007

Nem Drummond nem Quintana

Fiquei tão gauche na vida
que pela esquerda posição em que me encontro
nem da esquerda faço parte.

O anjo torto voltou o rosto
resplendente
e disse apenas:
“Assim não é possível.”
Desviou os olhos,
retirou o amparo
e nem conselhos deu.
O anjo torto se foi
e depressa me esqueceu.

Acredito que tudo isso
seja só falta de um estilo próprio.
Afinal,
ninguém pode amar alguém
que não seja um outdoor de si mesmo
não saiba cantar
e nem ao menos utilize o photoshop.
Ninguém em sã consciência
entende tanta falta de cadência
tanta resignação ante o real
e tanta falta de raça.

Qual é a graça de não ter respostas à altura
e de viver entre livros e teclados
e nem ao menos se inscrever num chat
– maneira diuturna
de procurar sua turma?
Além de tudo os anjos
voltaram à moda
e agora vivem diante dos espelhos
comprados secretamente na Avon
descobrindo o prazer da própria imagem
insipientes narcisistas
intolerantes para com mortais
que lhes pareçam angélicos demais.

quinta-feira, junho 28, 2007

Sentimentos


Blue Molleskin. Auto-retrato.

O que não fiz
bate insistente no teto do porão
sob meus pés.

Cruza comigo na rua
demora um olhar de enigma em meu rosto
e seu sarcasmo fere os sentimentos
que todas as manhãs
espalho sobre a pele
(que para isso servem os sentimentos).

quarta-feira, junho 27, 2007

Tradução


Imagem de Saul Bass.

Presa entre os dentes
a palavra espera
desespera
e inarticulada se traduz
uivo e lamento.

terça-feira, junho 26, 2007

Paisagem


Monterey Baycom.

Buscou alguma vida
um reinício
mesmo desgastado
para repor as aves que fugiram
durante as décadas do engano.

As chuvas de hoje
fecundaram as margens da barragem.
As águas chegaram
a ocupar boa parte da terra
disponível.

Nada no entanto mudou essa paisagem.


Teia viva

A teia é
fio a fio
condição de aranha e
laço do extravio.

Raiada em rumos
em si emaranhada e
expansiva
a seda contra os voos
a teia é
por si mesma
aranha viva.

domingo, junho 24, 2007

Babel



Às margens do asfalto
os edifícios desenham a vida
como se fossem os ossos da cidade.

Tanta gente indo e vindo
e os pensamentos são linhas de cerol
enquanto os mutilados misturam
os passos.

A quem pode importar
o que se sente
e o que expressam
esses rostos velozes de
fotogramas em preto-e-branco?

Ninguém conhece
as línguas que falamos
se mais que exíguo
o tempo nos confronta
nesses momentos incivis
perdidos em Babel.

sexta-feira, junho 22, 2007

Canção ao pai

Pai,
hoje pela manhã eu te encontrei bem jovem
olhando para mim da capa de um disco de Tom Waits.
Por que não me disseste
há mais tempo?

Daquelas tuas histórias
das longas noites de angústia que viveste
e me legaste
– soturno, a voz um eco escuro –
por que não me falaste?
Estavas nessa capa
e eras outro.
Estavas nessa capa
e me sorrias
como em notícia de jornal antigo.

Te procurei, meu pai,
depois de morto
para saber o rumo de tua vida
ao peso de tantos anos de tristeza
e os dias que perdeste nesse exílio
em que te aprisionaram, asas cortadas,
vivendo um outro em outro nome dado.

Por que não me contaste, pai,
o que soube tão tarde
– por que só te encontrei
depois que emudeceu
a tua voz?

quinta-feira, junho 21, 2007

Legado




Flores e voos da manhã
respondem minha questão.

Fui perdulária sem fim
e tudo que era meu restou perdido
: guardei lembranças e sonhos
friáveis como pétalas e asas.

terça-feira, junho 19, 2007

Exemplar


Léon-Jean Perrault. Uma história interessante.

Tenho nas mãos
um exemplar cheio de sangue
sob a pele.

O que o corpo procura
tão fundo em outro corpo?
Palavras curativas?

Melhor assim
a natureza nos deu um par de olhos
para enxergar os limites do contorno
e a isso chamamos vida.

domingo, junho 17, 2007

Sétimo dia

Sétimo dia
domingo
sol sem brilho.

De tudo que foi desfeito
de tudo que foi pisado
nada que faça sentido.

Infinitivo
o tempo nos vira as costas
e tudo vira passado.

sábado, junho 16, 2007

...


De noite
pardas desilusões
semeiam gatos cegos.

sexta-feira, junho 15, 2007

Condomínio


Foto Elliot Erwitt

O hálito
não te pertence
: perfume destinado
desde sempre
a quem te colhe
pétalas na pele.

quinta-feira, junho 14, 2007

Ceia

No calor do sangue
o brilho traiçoeiro dos rubis
vinho de nossa ceia.

segunda-feira, junho 11, 2007

Perspectiva




Vidro e madeira a meu redor
Veneza reluzindo na memória
e um poema dormindo sobre a mesa.

Se alguém ligar
pode dizer que nunca mais eu volto.

domingo, junho 10, 2007

Exílio


Foto Boris Kossoy.


Da estação deserta desse dia
uma viagem de trem pelo desvio
seguiu sem sonhos a bordo
rumo a uma terra nublada
de onde nunca voltaria
da longa manhã no exílio.

sexta-feira, junho 08, 2007

Espelho

Alguma coisa insegura
paira suspensa
no abismo
cisma no rosto.

O tempo passa
a máscara vincada
se altera
em aura e brinca

no corpo
nos cabelos
ora incerta.

Nos espelho
o antigo apelo
mostra o avesso.

quinta-feira, junho 07, 2007

Poliedro


anton peticov. the inner look.

Do jogo articulado no começo
resta pouco
:
a curva menos firme
fios ainda dourados no cabelo
no braço esquerdo
o sinal.

Células novas
de antigo desencanto
e as fotos
os espelhos.

terça-feira, junho 05, 2007

Salto no escuro ao sol


Pablo Picasso. Françoise Gilot.


A sensação de segredo da
semente ainda fechada
algum desejo sem nome
rua quieta na manhã
cidade em férias.
Caminhar sentindo
o sol
ainda morno
o melhor do verão
não o melhor
da vida.

Melhor talvez
ceder um pouco mais
ao outro lado
sentir-se menos responsável
menos ferido
mais liberto.
Ver em qualquer lugar
uma isenção
e conviver com a rotina
o desencanto
as lembranças.

Ter que existir
corola
que teima em não fechar e
fica recebendo o mundo
no coração.

segunda-feira, junho 04, 2007

Vento

O vento percorreu a tarde inteira
cortinas agitadas
jogou ao mar ligeiros lenços brancos
e mutações na areia.

Se o vento revogasse as leis mesquinhas
as frases feitas, juízos e conceitos
com que tecemos nossos disfarces
meias-verdades mentiras

o mundo mudaria sua face
e o sol talvez nascesse em plena noite
para mostrar o mal que o vento leva.

As ilusões, as crenças e disfarces
perderiam seus açoites
e o amor teria enfim vencido a treva.

domingo, junho 03, 2007

Timidez



Escondo-me nos dias
como entre nuvens
espumas
para assistir a vida
atenuada.

sábado, junho 02, 2007

Incidência

Em meu tempo de criança
achava que a realidade
era uma caixa de ruge
cheirando a royal briar.

Em meu tempo de criança
não havia realidade.

Muito mais tarde aprendi
a realidade é nuvem sobre um rio.
A realidade chora sobre o rio.

Quem será essa senhora?