domingo, janeiro 31, 2010

Lembranças


Tudo estava tão triste na sala e na varanda e os pássaros da rua tão calados, imaginava por quê, sem ter ideia do que estaria por vir dali em diante todas as tardes à hora em que não chegaria ninguém, como em todas as horas agora acontecia, e as distâncias pareciam maiores, salas de espera mais desoladas que de costume e as pessoas impenetráveis e secas como passas velhas, não importa a idade que pudessem ter ou que razões carregassem nas mochilas.

Tudo jazia a vida mecanizada e o dia-a-dia monótono, por causa do horizonte fechado a poucos metros de distância de seus olhos, e dos relógios que os homens nunca deixam de fabricar  para ninguém, sem acontecimentos ou vozes nem olhares que abrissem outra visão impossível de iluminar, em uma casa tão pragmática e bem equipada para viver espantando as lembranças e satisfazendo desejos sozinhos que as traziam de volta sem calor nem voz.

Lembranças são partituras feitas para nenhum instrumento.

 

quinta-feira, janeiro 28, 2010

A lua e o vento

 








No mar da noite moravam
sereias feitas de espuma.
Sementes de sal na boca
o vento plantou salinas
no fundo da maré cheia
pra temperar as sereias.

Um barco branco levava
a prancha branca da lua.
Sementes de amor nos olhos
o vento enterrou a lua
numa salina distante
pra jantar de madrugada.

Acompanhantes da lua
toda apagada de triste
sereias petrificaram
sementes de dor no peito.
O vento baixou a crista
e foi chorar noutra praia.

domingo, janeiro 24, 2010

Boneca


Imagem Henri Cartier-Bresson.


Dentro da velha casa de bonecas
minha predileta
desconjuntada
braços de pano pendentes
cara de nada absoluto.

Bobagem ou contradição em termos
não pode ser o nada absoluto se ainda é uma boneca
mesmo quase desfeita
mas penso
parte dela virou pó
não é mais a boneca que foi
porque começa a navegar no nada.

Triste e um pouco assustada
olho o espelhinho da casa e percebo
o nada absoluto em meu rosto
também.

quarta-feira, janeiro 20, 2010

Haiti



Inútil tentar entender por quê
uma sentença sem rosto
cobriu de tantas nuvens o Haiti.
Prédios casas e mercados
sepultaram corpos no concreto
entre as esquinas secas 
de Porto Príncipe.

Uma sentença sem rosto despertou
a ira o medo o espanto
:
nem pelo fogo nem pela água
veio o dilúvio
porém de tudo que os homens construíram
com mãos de vida.

sábado, janeiro 16, 2010

Em branco

                 


Sete palmos de silêncio
nas planícies da memória
histórias agora são
nuvens ao vento.

Sem nome nem endereço
começos em andamento
perdidos num chão sem rastros
no mastro sem documentos
a palma da mão sem traços.

Uma canção que não canta
sem letra nem partitura
deixou em seu lugar
dores antigas.



segunda-feira, janeiro 11, 2010

No asilo

















Psycho-vamp. Sem menção de autor.

Diante do espelho
e cego
o descendente do vampiro
remorde o nada.
Todas as noites sonha com donzelas
e acorda alucinado
sem os dentes de fio.
As mãos lhe tremem
o mundo está vazio e escuro.
Tem só duzentos anos
come rações de frutas
papas de nata com ovos
polentas ralas
e às vezes alguma truta bem cozida.
Apenas seu vizinho
lobisomem
aposentado fraudador da previdência
tem dó de suas perdas e o socorre
com ratazanas da feira de segunda.
É um banquete irrisório
e mesmo assim

No oitavo andar do prédio modernoso
o gigante dos irmãos Grimm já quase expira
dobrado no pé direito de três metros
trancado pela rainha
que já não corta cabeças
mas treme
ouvindo a voz de trovão de Barba Azul
interno do andar de cima.