sábado, outubro 30, 2010

Seis variações sobre a palavra chave


1 A palavra chave
não fecha
só abre armários
onde dormiam
outras palavras.

2 Toda palavra-chave é generosa
e faz descer dos sótãos
imensos dicionários sem segredo
3 (sendo o verbete segredo
secretamente
uma palavra-chave).

4 Existem chaves a gosto
embora se devam preferir
as mais discretas

5 Lugar-comum não entra
palavras abstratas são temíveis
: melhor falar do que se vê
escuta e sente em textura
acaricia ou fere a pele.

6 Sinônimo perfeito de palavra-chave
devia ser
palavra-mãe.
                                  

quinta-feira, outubro 28, 2010

À la Adélia

Foto sem menção de autor.


Ando fugindo de Deus
e ele, que é de graça,
me sorri sempre
como se fosse
minha mãe.
Andei descrente de Deus
e ele me seguindo
aonde quer que eu fosse
como um amante
ou meu anjo da guarda.
Nem sei se é gratidão
o que Deus quer.
Talvez seja melhor
continuar vivendo
em seus ilimites
e amando o que afinal
conheço mais de perto.


terça-feira, outubro 26, 2010

Inventário


Sei do passado
chegadas e partidas
– viver é contar perdas.
Sei do cansaço
as flores e
os ninhos dissipados.

Da urdidura das vozes
tantas vezes
mina uma língua estranha
indesejada.

sábado, outubro 23, 2010

Esquecimento


 Dario Mercatti.


O céu e o cheiro do mato
descem a montanha
até que o perfume se entranha pela terra.
Esquecer é quase isso
não sentir o que vive
mas se ausenta
e espera um perfume que o traga de volta.

quinta-feira, outubro 21, 2010

Congonhas


Seria uma cidade igual às outras,
diamante bruto ao fundo da montanha-mina,
não fosse pelo bailado dos profetas no adro
os movimentos leves de pedra-sabão
as dobras panejadas de seus mantos
e as faces impenetráveis
angulosas.
Esses profetas
cobrem a terra de harmonia lúdica
em cantos inaudíveis.
Tornam em ouro o pó
e o azul do céu em prata clara.
Decidem os destinos da cidade
secretamente
no espaço-tempo dos fatos.
E ao lado da aparente sisudez
praticam um misticismo fetichista,
ritualista e irreverente
que à noite anima os personagens pios
dos passos da via-sacra
para os fazer pecar.
São sábios a seu modo,
unânimes como os sete anões de Branca de Neve
e, íntimos do Pai,
riem dos homens e dos anjos,
enquanto lançam sobre os visitantes
o olhar vazio das estátuas.

segunda-feira, outubro 18, 2010

Cena

Ancorado no cais
um barco sem nome nem hora de partir
embala de leve um cão adormecido.

sábado, outubro 16, 2010

Poema-amigo: Nílson Galvão

O poema a seguir é um dos dois que Nílson dedicou a Borges e/ou Cortázar.
Vale a pena conhecer os dois poemas, no Blag.
Sempre vale a pena ler a poesia de Nílson.


O vidro-mundo
Não, eu não saberia dizer por quanto
tempo essa música insone, desde Pitágoras,
não sei, desde um sábio qualquer no futuro
que é o mesmo. Essa música mesma,
mesmíssima, soando, soando, soando,
música gerúndio, gerânio. Você que
me abre a porta insuspeita no corredor
habitual e lá está, a flor-espinho, a carne viva,
o vidro-mundo. Me diz por quê.


Nílson Galvão









Inexato

Suspeito dessa manhã envidraçada
em luzes falsas e chuva nos cabelos.
 
E se os pássaros voltarem?

Se bem mais tarde a noite viajar ao fundo de sua música
até se desdobrar em muitas luas asas
dobraduras
aos olhos das janelas?
Visões que o cansaço apagou
quem sabe?
podem ter sobrevivido.

Dade Amorim

quarta-feira, outubro 13, 2010

Espuma e sal*




Segredo de espuma e sal
tropeça numa saudade que vem longe
pode chegar de repente
e o medo arde na pele.

A alegria se assusta como quando alguém
prepara uma surpresa e é surpreendido:
alguma coisa ainda não tem nome
e por um triz consente.

O instante se avizinha.

A noite todo dia
é sem aviso.

*Poema reeditado.

segunda-feira, outubro 11, 2010

Álbum de retratos

 
Alta rapina de outono
em voo exato
a morte cobre a paisagem
nuvem depois do almoço.
Na hora mais morna do dia
0s pratos sujos
a casa desarrumada
essa visita.


Deixamos os brinquedos no porão
e ela ficou
toda a tarde desfiando
dores perdidas
malogros
atavismos
e rostos fora de moda
em fotos amareladas.

A morte se repetia
e estava nua.

quinta-feira, outubro 07, 2010

Poema-Amigo: Assis Freitas


 

Nesta semana, ele postou essa joia:

improviso sobre aquele poema que não te dei

ao te ver em velas, velo
o torpe desvelo, novelo
em que se tece, esquece
a dor e o desvario, rio

desse fruto tosco, mordo
e afino migalhas, guitarra
de tão línea fibra, retina
largamente em ilhas, sina

a cada verso findo, minto
e a ti flor prometida, linda
recorda-me o destino, tino
sobraçar o vazio, principio



Fuessli. Beijo.



 Amor é sempre

Poemas de amor antigo
mesmo os amores de outrora
antigos que foram novos
qualquer poema de amor
é sempre agora.

Dade Amorim




terça-feira, outubro 05, 2010

Paraty III




Não ficou longe minha cidade
na curva silenciosa das montanhas.

Aqui o passado abriu leitos de rio
limite e correntezas
e volta a se duplicar em seus espelhos.
Aqui os viajantes se hospedam
e o casario permanece puro
sem indulgências plenárias
romarias.

As sete cabras de prata se sustentam
para afastar agouros e usurários
mais corrosivos talvez que a maresia.

Por trás dessas montanhas
minha cidade dorme
corrompida.

sábado, outubro 02, 2010

Sem melodia

Na casa
o frio que vem de dentro é o mais frio.

À sombra
um rio urbano
música sem melodia
compassos irrepartidos
traz do fundo da corrente
uma semente bruta de passado.

Do rio sobe uma canção vazia.

Algum momento incauto
quase alegria
molhado de pensamentos
voa desajeitado
e vai se juntar ao lixo
onde comem as garças.