quarta-feira, fevereiro 29, 2012

Ficções



4

Há muito não via ninguém
naquela casa
feita de pedra
um pequeno castelo
a torre à frente
um jardim maltratado.
Hoje passei por lá
e um casal maduro
ele bem branco
muito calvo
ela esbelta e pálida
saíam levando grandes bolsas negras
e a mala de viagem.
Tentei ver melhor os dois
mas não havia como
parar o carro no meio da ladeira
logo depois de uma curva.
A curiosidade porém crescia
a cada metro
e decidi estacionar
na pequena rua ao lado.
Queria lhes perguntar tanta coisa
saber de sua vida
e até uma ideia meio louca me veio
de entrar em seu castelo
que sempre me despertou mil fantasias.
Foram apenas uns dois minutos
do carro até o portão
mas já não havia ninguém.
Passava um homem do povo
desses com quem se esbarra
a toda hora.
Não resisti
e perguntei se havia visto o casal.
Olhou para mim com certo espanto
A senhora mora por aqui?
eu disse a cinco quadras
e ele sorriu de leve e me informou
A casa está vazia há doze anos
e ninguém entra nela
por causa dos fantasmas.

segunda-feira, fevereiro 27, 2012

Ficções



3

Havia já muitos meses
vivia só
numa cidade
onde não tinha nascido
sentindo o corpo vazio
passando as noites acesa
transparente fantasminha
olhando a televisão.
Em um programa
desoras avançadas
descobriu alguém falante
que a fez sorrir de esperança
– o doutor da salvação.
E de manhã
muito cedo
olhos inchados
vermelhos
tomou o caminho da cura
ou o que assim lhe parecia.
Pouco mais de meia hora
e descobriu
de moto próprio
no doutor
um charlatão.
Voltando desanimada
a outro dia vazio
dormiu no trem do metrô.
Abriu os olhos
desassistida
sem perceber
por que acordava
e estremeceu
de uma ternura
em algum incerto
lugar do corpo.
À sua frente
não era estranho
aquele estranho.
Dele chegava uma vida
uma alegria desavisada
mas confirmada
quando trocaram duas palavras
desceram juntos da estação
e juntos se aperceberam
de tudo que os esperava.

sexta-feira, fevereiro 24, 2012

Ficções



2


Onde andará
aquela moça triste do quinto andar
que há tanto tempo não vejo?
A que vivia debruçada na varanda
como quem pensa
em se matar?

quarta-feira, fevereiro 22, 2012

Ficções



I

Escrevi uma carta
autocastigo
que chegou ao destino
mais depressa do que imaginava.
Dizia tudo que desejei esquecer
lembrava o que não devia nunca
ser lembrado
e confessava pedaços de uma história
desconhecida do público em geral.
Depois de ter chegado às mãos erradas
pensei que vazaria
derramada
rolando de casa em casa
e rua em rua.
Chorei
perdi o sono
durante as quatro noites de aflição
e quase desmaiei de emoção
ao receber o envelope
devolvido
e dentro dele a carta picotada.
Junto chegava um recado
dizendo
‘para de pensar nisso.
A fama tem um preço bem mais alto.’

segunda-feira, fevereiro 20, 2012

O tempo e o caderno


O caderno de janeiro
já chegou a fevereiro
não demora
março aflora.

O ano se despeja pelo tempo
lavado de inesperados
por chuvas recalcitrantes
queimado de tantos sóis
semanas que se desdobram
e os dias
se desmanchando
sem piedade de nós.

Prefiro pensar que o tempo
avisa
não perca a vida
aproveite o que puder
do tempo que vai passando
deixe sua marca explicar
o porquê de ter nascido
e um recado aos semelhantes
que torne essas outras vidas
quem sabe
mais contentes
enquanto o tempo desliza.

sexta-feira, fevereiro 17, 2012

Depois



Quem sabe o tempo que passa
numa noite
enquanto o pasto cresce?

Desfeita a construção
o mar
aos poucos cobre os campos
onde a guerra
traçou em sangue o solo da vigília.

No fim do dia
a têmpera das horas cobre a tela
e tudo é memória.


quarta-feira, fevereiro 15, 2012

As águas


Do quarto andar
acompanho notícias
águas que vêm e vão
para bem longe
pelo útero escuro da rua.
O que cabe em minha agenda
é um esqueleto falso
fabricado às pressas
num dia sem pauta
cheio das linhas tortas
por onde ninguém
terá a coragem de dizer
que Deus escreve (direito?)
o adverso.
Alguma espécie de entendimento
deve ser possível
mas os bueiros engoliram
tanta coisa
além de um embrião
e um caderno de capa cinza-pérola
– um organismo vivo é outra coisa.
Meus sensores rugem à passagem
de relâmpagos retardatários
luz do rompimento
no limite de onde a treva desenha
o outro lado da rua
e me chama para longe
da cumplicidade das máquinas.

Lá se encontrará um canto secreto

um lugar que com certeza
existe

e se deseja 
durante a vida inteira.


segunda-feira, fevereiro 13, 2012

Meditação



Sofro o que posso
nem menos nem mais.
O sonho é para sempre
a dor tem fim
e o amor dita consolos de saudade.
Aos poucos
tudo se coagula em sombra
e o tempo tece
instantes sem limite.
Todo mortal corre o risco da chama
– a luz aquece
enquanto não se apaga.
Viver é a proposta
grande o enigma.
Talvez um dia
chegue uma resposta
a dádiva que vem da ventania.