sábado, maio 31, 2008

Constelações de outono



Nas imagens da janela
ventos frios
e ecos avulsos
de vozes inseguras.
Presenças apressadas e distantes
pelas calçadas
cenários desenhados
para a muda constelação das outras vidas
no cosmos dos condomínios outonais.

sexta-feira, maio 30, 2008

Registro

Acordou em agosto
sentou à mesa junto da janela
com a xícara de café
o líquido quente na língua
a ardência no peito.
A sala era uma perspectiva acinzentada
como se a tivessem pintado durante a noite.

Levantou de repente
desceu correndo os degraus
e seguiu pela calçada cumprimentando quem passava
como se conhecesse cada um há muito tempo
pensando – melhor assim –
e sorria ao grupo de crianças de uniforme
e à velha senhora passeando um beagle barrigudo
não muito mais novo que ela.

Aguentou o sorriso duas esquinas e três passos.
Caiu entre as pernas dos transeuntes que corriam
para não perder a hora do trabalho.

quinta-feira, maio 22, 2008

Necrológio para J.T.



Vivia em busca de alguém
para mudar o rumo da vida sempre igual.
Podia ter sido mesmo um ser fantástico em trajes espantosos
que revelasse enfim o sentido da existência
transcendência ou razão
e os melhores macetes da bolsa de valores.

Queria uma casa onde morasse mesmo estando longe
e um sonho esclarecedor
sobre como a ciência varreria do planeta
a morte e suas metáforas.

Queria garantir um sono sem surpresas
e mais que tudo esperava encontrar o amor eterno.

Acreditava num talento oculto
que lhe abriria as portas decisivas na hora certa
ora passada.

segunda-feira, maio 19, 2008

Poeira



As pegadas do tempo
vão cada vez mais longe
sobre a pele do corpo
sobre a pele da terra.

Pensar
é a poeira que o tempo levanta
para cobrir as verdades
que nunca vamos entender.

quinta-feira, maio 15, 2008

Dia

Ao fim do dia
como quem não espera mais da vida
fecho nos olhos lembranças movimentos
e o próprio vento agora silencia.

Tudo que peço da noite é um longo sono
que me dissolva nesse quarto escuro
onde as imagens se perdem nas paredes
como fantasmas através dos muros.

Nada porém será como eu queria
: o sono se despedaça em largos voos
e o fato consumado desse dia
não foge mas se repete pela noite.

sexta-feira, maio 09, 2008

Retrato


Foto Margarida Delgado.


O dia passou veloz
trouxe a janela de maio
e uma voz antiga como a brisa.

Guardei o dia
no álbum dos retratos mais amados.

segunda-feira, maio 05, 2008

Andante



O horizonte cresce nos limites
o vento quebra os passos
e o mar se apressa.

Dentro da concha
o andante se transforma num alegro.

sábado, maio 03, 2008

Visita ao porão

Encontro em poucos metros
o duplo do passado
que nem mesmo buscava
numa fusão de cores
e sons.
Nada depende de mim
no caos intenso de rostos e visões
da vida que repasso.
Tudo me escapa
e me pergunto
que potente vontade encaixou as peças
e o estranhamento
no meio do caminho
e se foi dado a alguém
escolher sua vida.

Nada se explica
além do obscuro desejo que nos move
e arrasta seus acréscimos.

Revejo os dias lugares
as casas e pessoas
não há mais nada.
Não existem sobras
e o passo com que andei
era de outro
não meu.