segunda-feira, julho 05, 2010

Habitare


Há muito tempo estão conosco os móveis livros
e tantas coisas
roçando nossas vidas sob o desgaste do teto que reflete
a luz da manhã no jardim.

Há quanto tempo nos protegemos de sol e chuva e dos ventos do estio
por trás das mesmas janelas de cortinas claras
que nos defendem da rua
a resguardar a sala cor de sépia.

Há tanto contornamos a curva das escadas
sabendo cores e penumbras e paisagens do quarto mais acima
e conversamos sobre coisas sem lugar ou utilidade
que vez ou outra esquecemos como corpos mortos numa prateleira
até que se tornem de novo uma pequena surpresa e toquem nossos lábios
com uma espécie branda de sorriso.

E o que são os anos para nós
que a cada dia lemos os jornais na rede da varanda
e ainda reconhecemos os lugares das coisas
que há muito se extinguiram?

 


dade amorim
Poema reeditado.


 O Poema-amigo de hoje vem de A Barca dos Amantes, um blog delicioso e bonito, onde reina nosso amigo Leonardo B. Os poemas de Leonardo são daquele tipo com que o leitor se identifica facilmente, daqueles que levam a gente a voltar ao blog, para não perder nenhuma das novidades que a criatividade do poeta está sempre engendrando. 


Escopo em construção

Deixa que desabe esse telhado,
Este pedaço de vida mal escorado
Da casa quase em ruínas,
O meu corpo que aguarda essa água
Fértil, que se derrama
Por todas as artérias deste tronco frágil,
Derradeira porção abcisa neste edifício
Quase desmoronado.

Derradeiro este plano inclinado,
Sem vigas ou caibros,
Que a sustentem na horizontal linha,
Pedra cimento amianto,
De onde desabam estas telhas, este telhado
Pelo redor o tempo que de há
Tanto anunciado, pelo chão da terra vã
Haverá de cair.

Derradeiro o vento que toma esta casa
Abandonada, este corpo que não conhece
Fim. Neste vegetal sangue que se renova,
Acomodado caos, gerado humano,
Qual espírito que tudo toma, parece,
Como um anjo desprovido
De voo, sereno argumento,
De apenas uma asa.

Deixa este telhado em mim desabar,
E com ele, do fim todos os fins,
Onde o húmus de vida se haverá de renovar.
Possa cair a vida onde tudo se renova
Tudo se ergue, tudo se levanta
E segue, tão vazio tão cheio
De vida, onde a mais delicada,
Onde a mais árdua palavra se prova.

Leonardo B.



5 comentários:

Anônimo disse...

As coisas se desgastam, paredes descascam, casas encardem seus telhados, e a poesia se renova com palavras repetidas, mas bem que parecem novas tão bem escritas assim. Dade, seus poemas mexem comigo como uma lembrança que nos inculca, como algo que sabemos conhecer, mas não lembramos de onde. Vc me toca, poetisa.

E ótima escolha, o Leonardo é um dos maiores poetas que já vi por aqui na rede.

Beijos.

Unknown disse...

Perfeito, Dade!

As coisas que cansamos de ver, de repente surgem como novas, através de um novo olhar, quem sabe também o humor do dia.

O poema de Leonardo B, é fascinante.
Aliás na entrevista dele, fiquei encantada com sua simplicidade.

Beijos

Mirze

nydia bonetti disse...

casas são como gente - nascem, vivem, envelhecem e antes de morrer, contam histórias...
coisa mais bonita esta tua prosa com os poetas e seus poemas, dade. esta prosa, especialmente me emocionou. a casa cai, a vida segue... beijos.

Carol Timm disse...

Dade,

Esses são alguns dos poemas que quanto mais leio, mais gosto e é muito difícil dizer porque.

Mas eles falam muito, de alguma forma coisas que não se pode esquecer.

Beijos,
Carol

Márcia Maia disse...

e o que são os anos para nós
que a cada dia lemos os jornais na rede da varanda
e ainda reconhecemos os lugares das coisas
que há muito se extinguiram?


coisa mais linda, Dade.
1 beijo daqui.